Reforma da Constituição

Com a Constituição de 1978 passou o que tinha que passar; o que é inevitável que passasse quando se põe em prática uma política que não é assumida com convicção e responsabilidade.

Por Ramón Varela | A Coruña | 26/12/2015

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Quando se redigiu a Constituição introduziram-se certos condicionantes dos poderes fáticos do Estado, que são quem realmente mandam, que desnaturalizaram o processo. Foram os militares vencedores quem impuseram as suas decisões em aspectos decisivos como os relacionados com a distribuição territorial do poder, que se concretizou na modificação do artigo 2 tal como fora proposto polo relatório, que dizia: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha e na solidariedade entre os seus povos e reconhece o direito á autonomia das nacionalidades e regiões que a integram”. Esta redação foi duramente combatida por pressões externas sobre a UCD para que se retirasse o termo nacionalidades, em contra do critério dos nacionalistas e comunistas. Finalmente, os poderes fáticos propõem como inegociável a seguinte redação: “A Constituição fundamenta-se na unidade de Espanha como pátria comum e indivisível e todos os espanhóis e reconhece o direito á autonomia das nacionalidades e regiões que integram a indissolúvel unidade da nação espanhola”, que com ligeiros retoques é a que se vai aprovar, ao tempo que o relatório elimina toda referência a este termo no título VIII. Por tanto, cumpre ter presente que uns poderes que não se apresentam ás eleições e que não dão a cara ante os que têm que decidir, são os que estabelecem as regras de jogo sobre as que têm que decidir. Por outra parte, que os vencedores imponham as suas condições é incompatível com a sua apresentação ante os eleitores da farsa da Constituição da concórdia e da superação das feridas causadas pola  guerra civil, porque mantém os ressabios franquistas de que a guerra se fez principalmente contra os nacionalistas. O seguinte passo vai ser a desnaturalização do termo nacionalidades, deixando-o sem nenhum significado preciso e convertido, todo o mais por alguns, numa espécie de nação cultural sem implicações políticas.

Quando se debateu o Título VIII, ao tempo que se aceitaram as autonomias, decide-se, no artigo 141, manter a organização centralista provincial com as deputações ou organismos equivalentes, que se converteram em autênticos ninhos de corrupção e clientelismo, que tantos quebramentos está a causar ainda nos nossos tempos. Mantêm-se, pois, o centralismo da direita e o velho jacobinismo, de procedência francesa que lhe impede ao PSOE dar passos coerentes na reformulação do Estado. Uma segunda conclusão é que, além de conservar ressabios franquistas, incrementados com a restauração dum monarca nomeado por Franco, esta Constituição é ineficiente, porque encarece enormemente o custo dos serviços para os cidadãos.

Uma vez terminada a discussão do Título VIII. Da organização territorial do Estado, o deputado de Euskadiko Ezquerra Francisco Letamendia Belzunce propôs uma emenda de introdução dum novo artigo sobre o princípio de autodeterminação dos povos, que se materializaria a proposta duma quarta parte dos deputados duma Comunidade Auônoma e o voto favorável da maioria absoluta do censo eleitoral. Esta emenda somente foi apoiada com os votos a favor do PNV e do próprio Letamendia, votando em contra os nacionalistas de CiU e os socialistas e comunistas, apesar de que teoricamente levavam nos seus programas a defesa do direito de autodeterminação dos povos de Espanha. Dizia, por exemplo, o programa do V Congresso do Partido Comunista de Espanha do ano 1954: “A unidade do Estado espanhol não será nunca verdadeiramente sólida e democrática se se assenta sobre a força e a assimilação violenta, sobre a negação dos direitos nacionais. Por isso, os comunistas estamos contra a subjugação dumas nações por outra e defendemos o direito dos povos á livre autodeterminação. Susteremos, pois, o direito dos povos de Catalunya, Euzkadi e Galicia a decidir livre e democraticamente o seu destino”.

O relator constitucional Jordi Solé Tura, do Partido Comunista, reconhece que “o direito de autodeterminação dos povos é, ao meu parecer, um princípio democrático indiscutível, pois significa que todo povo submetido contra a sua vontade a uma dominação exterior ou obrigado a aceitar por métodos não democráticos um sistema de governo rejeitado pola maioria tem direito á sua independência e á suas forma de governo que deseje livremente” (Nacionalidades y nacionalismo en España, Alianza Editorial, Madrid, 1985, p. 141). Mas confessa abertamente que a esquerda espanhola não nacionalista o entendia como “um princípio que permitiria derrotar aos independentistas com métodos democráticos, quer dizer, opondo ás pretensões de separação e independência a vontade duma maioria democraticamente forjada” (Ibid, p. 147). Formidável confissão. Reconhece-se um direito mas com a finalidade de derrotar aos que o propugnam. Esta é também na atualidade o posicionamento de Podemos: não meneia-lho e se outros o forçam, votar em contra. Outros opõem-se a este direito pretextando que os textos da ONU nos que se recolhe somente o reconhecem para contextos coloniais e que esse não seria o caso espanhol. Ou seja, que se pretende limitar um direito por nascer num determinado contexto e, por tanto, seria a primeira vez que se restringe um direito ao contexto que lhe deu origem. Seria o mesmo que limitar o direito á liberdade individual somente aos casos em que exista escravatura. 

Uma vez vigorante a Constituição, houve vários fatores que contribuíram a incrementar a pressão centralista. Em primeiro lugar, o afundimento do UCD e a ocupação do seu lugar político pola neo-franquista e hiper-centralista Alianza Popular, matriz do atual PP, cinco de cujos membros nem sequer apoiaram a Constituição de 1978 e três se abstiveram, dum total de 16, apesar de que optara por defender o si no referendo. Os motivos principais foram a introdução do termo nacionalidades, a constitucionalização do sistema proporcional, a formulação do sistema econômico social e a deficiente definição da família.  

Em 1982 a UCD e o PSOE propõem-se reconduzir o processo autonômico e a estes efeito aprovam a LOAPA (Lei de Harmonização do Processo Autonômico) na que se reconhece a interferência do poder central na competência legislativa das CCAA e se estabelece a prevalência das normas ditadas polo Governo central sobre as normas das CCAA, que foi declarada parcialmente inconstitucional polo Tribunal Constitucional. Mas a politização crescente deste Tribunal a partir de 1985, faz que as suas decisões se inclinem cada passo mais polas políticas re-centralizadoras postas em marcha com persistência polos governos centrais, convertendo grande parte das competências exclusivas das CCAA em papel molhado, tendência incrementada pola pertença a UE, que vaziou de contido parte das competências estatutárias.

O processo re-centralizador incrementou-se na segunda legislatura do governo de Aznar, e com a política de recursos de Rajoy ante o Tribunal Constitucional quando estava na oposição e de espanholização intensa uma vez que o PP recupera o governo em Galiza em 2009, acede ao governo Fabra em Valência em 2011, Bauzá em Mallorca em 2011 e o próprio Rajoy também em 2011. Todos eles se caracterizam por não apoiar medidas normalizadoras, a promoção do bilingüismo como passo cara ao monolingüismo social, o voluntarismo lingüístico desde uma liberdade individual fundamentada em séculos de marginação desde o fomento do auto-ódio cara aos valores próprios, e marginação, e o desmantelamento das línguas próprias nos meios de comunicação e na escola, e o isolamento da língua do seu tronco natural: galego-português ou catalão.

Um fito particularmente relevante foi a sentença do Tribunal Constitucional dada a conhecer o 28/06/2010 na que invalida um texto previamente proposto polas formações políticas catalães, aprovado, após a sua domesticação, polas Cortes Espanholas, e finalmente referendado favoravelmente polo povo de Catalunya. A essa altura o Tribunal estava anormalmente constituído porque os partidos turnantes no governo central se negaram a renová-lo, além de ser um Tribunal muito desacreditado por estar politizado aos serviço do bipartidismo reinante. Esta sentença foi definida polo catedrático de Direito Constitucional Javier Pérez Royo como um golpe de estado. “Formalmente a STC 31/2010 é uma sentença constitucional. Materialmente é um golpe de Estado. Formalmente foi uma operação de defesa da Constituição. Materialmente foi uma operação de derruba”. A razão está em que cambia a filosofia que estabeleceu os estatutos de autonomia, que consistia em que os estatutos não se podem impor nem alterar sem o consentimento duma Comunidade, e, a partir dessa sentença, si que se pode fazer. 

A altura dos nossos dias, ante a atitude de resistência das CCAA, especialmente da catalã, frente a esta assimilação forçada, a reação dos partidos PP-PSOE e do emergente Ciudadanos e os seus abundantes corifeus tertulianos, foi a de condena dos dirigentes da Generalitat, tachando-os de radicais, extremistas, masismoleninistas (González dixit), de estar fora da realidade, únicos responsáveis da aloucada deriva independentista,... imitando a dialética utilizada na luta antiterrorista contra ETA. Aqui não há causas que expliquem os fenômenos, só atoleimados nacionalistas que surgem por geração espontânea sem causa nenhuma antecedente.

Agora o problema que se apresenta é: quê fazer? A reforma é difícil porque é obstaculizada agrestemente polo PP porque com os câmbios introduzidos pola prática político-judicial destes anos de vigência foi domesticada de tal modo que cumpre á perfeição os objetivos que partido mais centralista que teve Espanha na sua história, Alianza Popular, -agora em competência com Ciudadanos e UPyD- demanda á norma suprema; por outra parte, fez-se com uma série de cláusulas de intangibilidade, no referente á monarquia, por exemplo, para obstaculizar a sua reforma; e, por outra parte, estabeleceu-se um bipartidismo por meio do sistema eleitoral que a faz inviável se algum destes partido se nega e reformá-la, como vêm fazendo desde faz tempo; ao tempo que a composição do Senado impede a instauração dum Estado federal. A iniciação dum processo constituinte não está agora sobre a mesa porque é obstaculizado pola deriva monárquica do PSOE, pola defesa numantina da monarquia por parte do PP, Ciudadanos e UPyD e o abandono desta opção por parte de Podemos. Do qual se desprende que continuaremos tendo um Chefe de Estado sem legitimidade de origem, porque se lhe nega aos espanhóis o direito a decidir se querem um Chefe de Estado eletivo ou dinástico por imposição franquista.  

Há alguns aspectos nos que desejaria manifestar o meu desacordo com o Sr. Pérez Royo. Ele afirma que uma constituição ou um estatuto não podem, contrariamente com o que sucede com qualquer outra lei, impor-se coativamente, salvo que se precise, que não se pode impor se queremos ter uma democracia de qualidade, porque creio que o usual é que haja povos regidos por constituições que se vem impossibilitados de cambiar. A nivel do Estado espanhol nega-se reiteradamente a resolver o problema territorial porque, seguindo a Ortega, dizem que é um problema que não se pode resolver, dando-lhe aos povos o que estes pedem, senão que há que «conllevarlo», ou seja, há que agüentá-lo como quem tem um vizinho molesto do que não pode prescindir. Uma solução digna de fazer história na filosofia política.

Em segundo lugar, creio que põe demasiado ênfase nas virtualidades da constitucionalização do problema territorial, porque em todos os Estados federais há uma tendência também á centralização, por mais que esteja reconhecido o federalismo na Constituição. O problema não está só na constitucionalização duma solução federal senão também na existência dum Tribunal Constitucional independente e constituído em clave federal para que evite a apropriação paulatina dos competências estatutárias por parte dos partidos pro-espanholistas do governo central. Finalmente, creio que não se pode dizer que a Constituição espanhola não existe, ainda que si está em fase cadavérica, mas os políticos, ao igual que os taumaturgos, podem ressuscitar mortos..


 

 

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Ramón Varela Ramón Varela trabalhou 7 anos na empresa privada e, a seguir, sacou as oposições de agregado e catedrático de Filosofia de Bacharelato, que lhe permitiu trabalhar no ensino durante perto de 36 anos.