"Ao Cesar o que é do Cesar": uma hermenêutica cristã do poder

Esta frase do Evangelho de Mateus foi tradicionalmente utilizada para justificar a necessária não interferência directa da religião nos assuntos políticos temporais. Mas se situarmos os factos no seu contexto histórico para os interpretar e os valorar no presente, a frase pareceria indicar o contrário. Não só estaria a aprovar o pagamento de impostos, desde uma posição de neutralidade a respeito da ocupação romana, mas ainda se diria que está a constituir um mandato de contribuir ao "bem comum", é dizer, legitimaria a sociedade regida polo Império Romano e estabelecida segundo uns mecanismos que hierarquizam as relações humanas: a primeira "solidariedade" devia ser cara à Metrópole colonizadora (Roma) contribuindo com impostos e escravos ao mantimento e esplendor do centro do universo, à sua burocracia, à sua estrutura de dominação, e por suposto, ao seu exército. Em troca, todos os povos dominados haviam de ser redimidos pola cultura "superior" criada em Grécia e implantada polas legiões.

Por Xosé Morell | A Coruña | 19/10/2014

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Sabemos que entre os discípulos de Jesus e entre os primeiros cristãos havia soldados e colaboracionistas, mas também anti-romanos, e pessoas que lutavam pola sua liberdade e a dos seus povos. Portanto, essa interpretação exclusivamente legitimadora do poder civil não pode ser a original no cristianismo. Em realidade, procede de ser o Estado, já desde o século IV, um parasito do verdadeiro facto religioso: apropriou-se ideologicamente da exclusiva do sentido transcendente para se justificar, e da ética para conseguir uma coesão social que necessitava. Com a criação dos Estados-Nação modernos e Maquiavelo, ainda foi além do monopólio da ética, e acabou por prescindir dela. Finalmente, com Hegel, o Estado converte-se diretamente em religião, e a Igreja-Títere fica definitivamente como convidada de pedra, que dá prioridade à agenda política para fixar posições. Vemo-lo a cada passo que há uma aparente contradição: à hora de votar, para a hierarquia e os católicos submissos a ela, o primeiro sempre será a seguridade do Estado. Cesar teve o seu domínio assegurado. Depois pilhou o de Deus.
 
O Estado destruiu as verdadeiras igrejas -assembleias- e subordinou a religião, chegando a substituiu-la por si próprio. Por isso não todo ateísmo libera a pessoa, nem toda religião a subjuga. Como explica Felix Rodrigo Mora, "el ateísmo intolerante y totalitario no es un estilo de pensamiento objetivo que vaya tras la verdad, ni tampoco resulta inocente, pues hace de vehículo de algunos de los sistemas de ideas más funestas de la modernidad, sirviendo al actual régimen de dictadura para eliminar la dimensión espiritual de la persona". Uma posição honesta para procurar a proposta original do cristianismo a respeito do poder não deveria ficar estaticamente no resultado das suas inegáveis contradições históricas e éticas, mas procuraria qual foi aquela proposta que revolucionou o mundo causando um verdadeiro "buraco na História da humanidade".
 
A quem interessar este fio, convido a prescindir honestamente daqueles preconceitos criados pola modernidade, e fazer as pesquisas necessárias para encontrar e interpretar a verdade sobre Jesus de Nazaré: a sua existência e factos, tão acreditáveis como em qualquer outra figura histórica menos documentada. Lee Strobel pode ser um começo. E aviso de que não é este agora o meu tema de debate. Dou por estabelecido para avançar numa interpretação cristã da relação entre o poder espiritual e o temporal. Quem tiver outras hipóteses válidas, faz bem, e para a frente com elas.
 
Jesus não queria salvar o sistema. Tampouco queria botá-lo abaixo para o substituir por outro: lembrem que se o procurador romano o condenou, foi muito ao seu pesar. A sua proposta era simplesmente distinta. Nem critica o sistema, nem o justifica: está numa lógica diferente. Ele convidou a olhar os lírios do campo nada menos que como modelo de economia, e a procurar os recursos para uma vida digna e livre na interação respeitosa em comunidade e com a natureza; não numas relações de indivíduos baseadas no poder, do qual o dinheiro é o sistema circulatório. Antes de rir e desprezar um modo de vida tal, pensemos que o conselho de não ter como único senhor as riquezas não é uma utopia: de facto, a nossa sociedade tradicional não estava demasiado longe disso, nem a nossa atual é mais feliz por querer está-lo.
 
Do ponto de vista cristão, a natureza é necessária para a dignidade humana, pois traz consigo a assinatura do seu Criador: é imensa e amigavelmente generosa. A sua lógica é a de compartilhar e dar, não a de possuir e dominar. Ela é portanto a nossa referência de realidade, e as estruturas de poder o são de falsidade. Não significa isso ser a natureza referência absoluta da ética e a transcendência humana, pois, ao contrário do que supõem as religiões naturais, a criação não se identifica com o Criador: por exemplo, este perdoa sempre, e aquela nunca. É o perdão portanto o que nos assemelha ao Criador e, como dizia Mandela, tira de nós o medo e nos faz mais humanos.
 
Então, o cristianismo não é uma religião natural (mas compartilha com estas a parte de verdade que têm), polo que o seu ideal de ser humano não consiste em viver como a natureza, mas em viver da natureza. Podem poupar todos os ataques à minha ingenuidade poética. É evidente, e reconheço desde já, que este ideal de vida acabará em fracasso ao bater com o "reino deste mundo". Mas também, como dizia Xaime Isla seguindo Jaspers, o fracasso pode ser fonte de realização e esperança. Pensemos por exemplo que o fracasso do Estado capitalista, que você e eu estamos a padecer dolorosamente -digo com humildade e com todo respeito por quem o estão a passar pior do que eu- se for afrontado como uma recuperação da soberania das pessoas e comunidades dentro da natureza, pode ser fonte de realização. Já aconteceu antes: a queda do Império Romano fez Gallaecia recuperar as suas instituições celtas; o cristianismo ajudou a devolver o sentido da natureza que permanecia como substrato da sociedade, e Martinho de Dume recuperou aquelas instituições mediante a divisão administrativa em paróquias, que constituem a base real da nossa nação, e o seu futuro certo.
 
A revolução histórica desencadeada polo cristianismo, e os exemplos e modelos de sociedade que causou, não consistem em indicar por quem votar, nem decidir qual é a agenda política de cada momento. Nem serve tampouco para ajudar ao sistema de dominação a se salvar, nem para o substituir por outro igual de subjugador. A proposta tem mais a ver com a recuperação da dignidade e da liberdade, mediante a volta à casa que supõe a recuperação da humanidade e a natureza, imagem e semelhança daquela Outra Natureza da que procedemos: "A Deus o que é de Deus".

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Xosé Morell Nado em Vigo. Licenciado em Filologia galego-portuguesa e Hispânica. Master en Direção Comercial e Marketing pola EN Caixanova e en Direção Financeira e Contábil pola Universidade Autónoma de Barcelona. Atualmente em negócios de exportação. Padroeiro da Fundação Isla Couto. Foi Porta-voz no Parlamento da Galiza da ILP Valentim Paz Andrade para os vínculos da Galiza com a lusofonia aprovada e feita lei por unanimidade em 2013.