Por Ramón Varela | Ferrol | 02/04/2018
Desta maneira conseguiram que qualquer militante destas organizações pudesse ser detido e punido como membro duma organização terrorista. Foi também o que passou já recentemente com Podemos que foi considerado polos sectores da direita como populistas e afins aos regimes venezuelano e iraniano, previamente desprestigiados sócio-politicamente. Qualquer trabalho profissional que realizassem os seus militantes com estes governos será motivo suficiente para ser acusados de estar financiados por eles.
Quando falamos de estado de direito não falamos da forma de governo nem da sua legitimação, senão do sistema normativo vigorante em qualquer coletividade, que obriga coativamente a que todos os seus membros o respeitem e obrem de acordo aos seus preceitos, e que confere faculdade de exigir, fazer ou evitar algum ato, convertendo-se assim o direito ou sistema normativo no fundamento de direitos subjetivos. No século XIX, o sistema vigorante na Espanha era a monarquia constitucional, que se regia também por um estado de direito que concedia ao monarca o poder legislativo e executivo. Diferenciava-se do período anterior absolutista em que o monarca já não está por cima da lei senão que está submetido a ela; sendo também o mesmo monarca quem impõe as normas; é um monarca com poderes amplíssimos, mas fica submetido a elas. Nestes casos, quem infringisse a lei vai ser castigado penalmente, e se os mandatários gozam de prestígio social vão, também mediante a censura dos cidadãos. Era também um estado de direito. Hoje não se admite outra legitimação distinta da democrática e, portanto, isto vai diferenciar também o sistema normativo comunitário, que já não pode ser imposto por uma pessoa legitimada polo seu nascimento no seio duma determinada família, senão que tem que criar-se mediante uma participação dos cidadãos na sua elaboração. Em consequência, para que haja estado de direito, o decisivo é que se implantem normas de obrigado cumprimento que obriguem a todos, mas não implica que sejam iguais para todos. De facto na atualidade no Estado espanhol a monarquia goza de numerosos privilégios tanto polo seu nascimento, que faz que uma menina de 12 anos já estejá predestinada a reinar neste país polos «Padres da Pátria» que redigiram esta «sacrossanta» Constituição a e receba o toison de ouro, a máxima condecoração espanhola, sem ter mérito nenhum para isso, como polos atos que realize, que possibilita uma justiça impunitiva para os membros da Família Real, como se demonstrou fidedignamente no caso de corrupção detectado no Instituto Noos.
O campo dos direitos humanos é distinto do âmbito jurídico, é o âmbito da ética ou da ética política na qual já não se trata do que é, de quais são as normas vigorantes numa comunidade, senão do que deve ser. Entramos assim no mundo das necessidades e aspirações humanas, do direito a exigir que se implantem umas normas jurídicas que favoreçam um ideal de humanidade. Um direito humano pode ou não estar recolhido num sistema de normas; se está recolhido, falaremos desse sistema de normas favoravelmente e, em caso contrário, criticá-lo-emos, mas o direito humano existe ainda que não esteja recolhido, por mais que não se possa efetivar. Esta distinção entre ética e direito objetivo é fundamental, porque em caso contrário corremos o risco de não entender a realidade sociopolítica.
A controvérsia entre os nacionalismos defensivos, no caso espanhol, os periféricos, e os nacionalismos impositivos, como o nacionalismo espanhol, obedece a que se movem em dous viveis distintos. Os primeiros no âmbito da ética, e mais em concreto da ética política, e, por conseguinte, das aspirações humanas, e concretamente nos direitos dos povos a auto-governar-se e a decidir sobre as relações que devem estabelecer com os demais povos, noutras palavras, a exercitar o direito subjetivo de auto-determinação dos povos;. e os segundos movem-se no âmbito do direito, do sistema normativo imposto por eles mesmos aos demais e muitas vezes tergiversado e adaptado ad líbitum. De acordo com o sistema normativo espanhol, está claro que os povos não podem exercitar o direito fundamental dos povos à autodeterminação, porque, apesar de que está recolhido no direito internacional, não vem recolhido e os unionistas não querem integrá-lo na legislação nem na CE, que consagra que o único povo soberano é o espanhol, e os demais povos têm que submeter-se ao que decida o povo espanhol. Se comparamos isto como o que estabelece a Constituição da Confederação helvética observamos uma diferença enorme entre ambas. Diz o seu artigo 3 da CH: “Os cantões são soberanos nos limites da Constituição federal e, como tais, exerceram todos os direitos não delegados ao poder federal”. Os espanhóis alegam usualmente que o direito de autodeterminação não se reconhece em nenhuma constituição, mas isso somente indica, por uma parte, o rol que têm os estados na sua redação e, por outra parte, porque um matrimônio não se celebra com a intenção de rompê-lo, senão de que dure muito tempo, mas sempre sem renunciar ao direito ao divórcio que concede a legislação nacional ou internacional vigorante.
O artigo da CE paralelo ao citado da CH, é o artigo 2, imposto polos militares, que reza: “A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas”. O povo espanhol é o único que se reconhece como sujeito político e os demais povos são simplesmente negados. Esta normativa constitucional tem implicações muito importantes na sistema competencial e no sistema de garantias dos direitos reconhecidos. Vexamos um caso revelador, como é o do idioma. O artigo 18 da CH determina: “Garante-se a liberdade do idioma”, entendido como o direito a que cada um utilize o idioma que queira sem imposições de nenhuma classe. O artigo 70 estabelece: “1 As línguas oficiais da Confederação são o alemão, o francês e o italiano. O retorromano é também uma língua oficial nas relações que a Confederação mantenha com pessoas de língua retorromana. 2. Os cantões determinarão as suas línguas oficiais”. Frente a esta legislação, a CE determina no seu artigo 3: “1. O castelhano é a língua espanhola oficial do Estado. Todos os espanhóis têm o dever de conhecê-la e o direito a usá-la. 2. As demais línguas espanholas serão também oficiais nas suas respectivas Comunidades Autônomas de acordo com os seus estatutos”. O espanhol é a única língua oficial do Estado, imposta como obrigatória para todos, e as outras são somente oficiais no seu território, e com uma oficialidade de segunda, porque ninguém têm obrigação de conhecê-las nem sequer no seu próprio território. Mas, incluso esta cativa legislação está sendo combatida polo PP e C’s para restringi-la ainda mais com a finalidade de convertê-la numa opção meramente individual e nunca coletiva, como sinal identificador e diferenciador dos povos, em aras de homogeneizar a realidade social e converter os cidadãos em rebanhos de ovelhas que devem perder qualquer identidade comunitária diferente da de pertença a Espanha.
Se falamos da reforma da constituição não há comparação possível entre a CE e a CH. Nesta última bastam 1.100.000 assinaturas de cidadãos para obrigar a sua reforma. No Estado espanhol é impossível sem a benção de qualquer dos partidos dominantes no Estado, até o momento PP e PSOE. É uma constituição vítima da chantagem dos imobilistas e reacionários. Todos estamos fartos de ouvir a Rajoy que antes de reformá-la há que indicar-lhe quê se quer reformar e qual é o objetivo da reforma. É uma constituição que blinda a perpetuação no poder de pessoas que dão lições de democracia, mas que evitam como a peste submeter-se a elas. É uma constituição pensada para o controle dos cidadãos em vez de ser a sua via de expressão da sua vontade política; basta uma leitura superficial das duas constituições para convencer-se disso..
No Estado espanhol produzir-se-ia um avanço qualitativo se a CE dissesse: “As nações são soberanas nos limites da Constituição republicana e federal, e como tais exercerão todos os direitos não delegados ao poder central”. Com uma constituição baseada na soberania das nações é muito provável que se terminassem as tensões das comunidades periféricas e se delineasse um futuro de muita maior confraternidades e colaboração entre todos os povos peninsulares. Um projeto destas caraterísticas seria combatido tanto polos imobilistas do PP como polos reacionários de C’s e os jacobinistas do PSOE, que querem controlar todo desde o centro e que todos obedeçam aos seus desígnios, mas deveriam perguntar-se é Espanha ou Suíça quem goza de maior estabilidade.
Volvendo à relação entre estado de direito e direitos humanos, podemos dizer que uma pessoa pode ser muito lúcida em direito e não ter a mesma sensibilidade em ética, e creio que este é o caso do excelente jurista Javier Pérez Royo, que numas declarações feitos à mídia o 18/03/2018 manifestava que comparava a sentença do Constitucional de 2010 como um golpe de Estado, enquanto vai modificar o sistema normativo das Comunidades Autônomas sobre a revisão estatutária fixada na CE. Mas quando foca o tema do direito de autodeterminação fracassa lamentavelmente. Disse ele: “Todo o mundo tem o direito de autodeterminação. Se uma sociedade é democrática todo o mundo exerce esse direito quando elege os concelheiros nas eleições municipais, quando elege os parlamentares autonômicos nas autonômicas, os parlamentares estatais nas eleições gerais... democracia e direito de autodeterminação são o mesmo”. É evidente que os atos aos que alude o Sr. Pérez Royo implicam atos de decisão, mas o direito de autodeterminação não se reduz a eleger os concelheiros nem os deputados autonômicos, senão que implica também e principalmente o direito a auto-governar-se e o direito a eleger o seu destino como povo e as relações que quere manter com os demais povos, sempre em pé de igualdade com eles. E isto é o que entendem tanto os nacionalistas como o direito internacional, que implica que os limites ao exercício desse direito tem que estabelecê-los o próprio povo e não corpetes impostos polas potência dominantes, e deste direito, Sr. Pérez Royo, sim que estão privados muitos povos, entre eles os que conformam o Estado espanhol. Portanto, querer a independência não é nenhum delito, como parece insinuar este autor, nem um povo tem que estar amarrado a outros para se auto-determinar e muito menos à aqueles que o aprisionam.