Por Ramón Varela | Ferrol | 18/08/2016
Vem isto a conto duma carta publicada pelos bispos de Getafé e Alcalá, López Andujar e Reig Pla respetivamente, e do apoio que receberam do bispo de Córdova, Demétrio Fernández. A
crítica dos citados bispos cinge-se á esfera da sexualidade, tema recorrente na deologia duma Igreja que limita o seu labor a exercer de lobby sobre questões de sexualidade
sobre a que, supostamente, não têm experiência reconhecida de nenhuma classe, e cuja
regulação constituiu no cristianismo um autêntico fracasso histórico, como se pode ver pelo que acontece ainda hoje com o tema do celibato de clérigos e monjas, que se traduziu historicamente numa sublimação psicológica deficiente da líbido que deu lugar a desviações em práticas sexuais não legalizadas e em múltiplos atos de pedofília, pederástia e homosexualidade, e com a defesa histórica da prática do eunuquismo.
Queremos reafirmar, antes de nada, o direito dos bispos a expressar-se livremente sobre
todos os temas que considerem oportuno, mas com a condição de que eles respeitem o
direito dos demais a dissentir, aceitem as regras de jogo democráticas e cessem no seu
empenho em impor a toda a sociedade a moral católica e a sua cosmovisão da realidade.
Quero também manifestar o meu respeito pelas suas pessoas.
A posição da Igreja caracteriza-se pela oposição a uma ética cívica, quer dizer, uma
ética integradora dos seres humanos como seres sociais e conforme com a consciência
dos cidadãos, não em contra, mas si á margém das crenças religiosas. Esta ética cívica é
a única viável numa sociedade plural na que convivem pessoas de diversas confissões
religiosas junto com pessoas ateas. A ética deve refletir a consciência comunitária de
todos os cidadãos e não somente a duma parte deles, ainda que estes sejam
numericamente majoritários na sociedade. A atitude de protesta destes bispos, que quiçá
representem o sentir majoritário duma hierarquia eclesiastica espanhola desfasada e
arcaica, representa um dos últimos estertores duma instituição que se nega perder o
monopólio da reitoria da ideologia e das consciências no que cimentou historicamente o
seu domínio sobre a sociedade. Eu pergunto-me a que pessoas representa esta posição
eclesiástica frente a uma lei aprovada por todos os grupos da Comunidade de Madrid e
somente com fortes críticas do partido de ultradireita e ultraminoritário Vox, o qual
significa que os bispos se alinham, como acontece também em 13 TV, com os setores
minoritários mais retrógrados e intransigentes da sociedade espanhola. Esta posição
extrema somente podem justificá-la pretextando que são representantes de Deus na
Terra que lhes confiou uma missão evangelizadora á que não podem renunciar,
pretensão não fundamentada, com o fim de inocular na sociedade os seus dogmas e a
sua visão antiquada da realidade e da ética.
As primeiras declarações contra a citada lei LGTBfóbia foram emitidas pelos bispos de
Getafé e Alcalá e nelas declaram que fundamentam o seu posicionamento moral na lei
natural tal como a expressa Cicerão, lei identificada com a reta razão, “uma lei
verdadeira conforme á natureza, estendida a todos” (De republica, 3, 22,33). O
primeiro que se deduz deste texto aduzido pelos dous bispos mencionados é que, em
caso de ter todos esta lei natural, conforme á razão, deveríamos pensar todos igual sobre
o correto e incorreto, mas já vemos que não é assim. Não existe uma reta razão abstracta
e estendida a todos senão múltiplas retas razões individuais que, postas na sua própria
circunstância extraem conclusões distintas umas de outras sobre o bem e o mal, o
correto e incorreto. Isto explica que os defesores do iusnaturalsimo não sejam capazes
de pôr-se de acordo entre si e que uns extraiam preceitos contraditórios uns dos outros
sobre os mesmos temas. Por outra parte, não vale tomar a reta razão natural como pauta
de conduta para umas cousas e negá-la para outras. A Igreja católica afirma que a
virgindade e o celibato são melhores que o matrímônio, mas estas proposições nunca se
podem derivar da natureza e da recta razão, e cumpre para isto, recorrer a textos bíblicos
miso-sexuais, que tanto abundam no livro sagrado. Aliás, em terceiro lugar, a natureza é
indiferente aos valores morais, que surdem da necessidade de regular a vida em
sociedade e que representam sempre uma coerção contra a natureza.
Começam os bispos atacando as afirmações contidas na lei de que “Toda pessoa tem
direito de construir para si uma autodefinição respeito ao seu corpo, gênero, sexo,... A
orientação, sexualidade identidade de gênero que cada pessoa defina para si é
essencial para a sua personalidade e constitui um dos aspecto fundamentais da sua
dignidade e liberdade”. Deste modo negam qualquer autonomia e liberdade pessoal nas
relações de gênero, reduzindo o ser humano a uma relação de infantilismo e
dependência a respeito da hierarquia católica, que seria a única legitimada para definir
todo o relativo ao corpo e sexo das pessoas e dogmatizar sobre a ideologia sexual. Igual
que se forjou a doutrina do pecado original para fazer as pessoas dependentes da
estrutura eclesial, que permitiu achar uma fonte de financiamento estável e duradoira, e
se proibiu a interpretação da Bíblia aos fieis pretextando que introduziam interpretações
errôneas, também se lhe quer impedir que tomem as decisões que considerem
pertinentes sobre o seu próprio corpo e sobre as relações sexuais com objeto de impedir
a sua emancipação neste eido. Negam também que a capacidade de decidir das pessoas
nestes temas seja parte da sua liberdade e dignidade, sem explicar que residiria essa
liberdade. Esta manifestação concorda com a constante histórica de negação da
liberdade pessoal, tanto psicológica como sociológica, por parte do cristianismo. O
home, devido ao nefasto invento do pecado original por parte de Agostinho de Hipona,
aduzindo um texto da Bíblia mal trauduzido por São Jerome, somente tem liberdade
para pecar, enquanto que é totalmente impotente para realizar qualquer obra meritória.
A negação da liberdade sociológica teve como corolário a prática e defesa da
escravidão, a inquisição e a reiterada negação dos direitos humanos de pensamento,
expressão, culto, etc., tal como se pode ler no Syllabus de Pio IX. O ser humano que lhe
interesa á Igreja é um ser sem iniciativa própria e submetido em todo ás consignas
eclesiásticas.
A respeito da diferença sexual manifestam os prelados aludidos que “O varão e a
mulher são iguais na sua dignidade de pessoas. Por isso, a diferença sexual não se
pode traduzir como desigualdade”. Este pronunciamento não se compadece com a
verdade histórica nem com a doutrina e praxe atual duma das instituições mais
misóginas que existem na atualidade. Num recente pronunciamento do papa Bento XVI,
afirmava dum modo talhante que se “Cristo se encarnou num home por algo foi”, dando
a entender a superioridade do home sobre a mulher. Aliás a Bíblia afirma que o home é
imagem de Deus, enquanto que a mulher é imagem do home, e por isso foi feita depois
e a partir do home. A mulher na Igreja nunca teve um papel relevante e limitou-se a ser
utilizada pelos dirigentes clericais para labors auxiliares, como limpar e adornar as
igrejas. Afirmam que a diferença sexual não se pode traduzir em desigualdade, senão
que é riqueza de humanidade, mas se é assim, o que cumpre é reconhecer a diferença de
todos os seres humanos, de todos os que se sentem distintos aos demais e querem ver
realizada a sua sexualidade de acordo com o seu sentimento; todos devem poder
reconhecer livremente este ser distinto dos demais sem interferências alheias de
nenguma classe, senão com a tolerância e compreensão dos outros, que nunca devem
converter-se em barreiras para a própria realização pessoal. Aliás, inclussive alguns
autores defendem que a homosexualidade é algo genético,e, caso de ser assim, seria
improcedente que a Igreja se opusesse a ela porque esta tendência humana seria algo
insita na natureza que é obra divina. Parece confirmar este facto a existência da
homosexualidade na maioria das espécies animais existentes. Quantos homosexuais
foram enviados ao inferno pela instituição cristã no decurso da história pelo simples
facto de ser e sentir-se distintos! Que esta condena está na Sagrada Escritura! Pois pior
para a Sagrada Escritura e para os que a seguem. O que cumpre é cambiar a Escritura,
mas não aos seres humanos nem a outros animais.
A carta dos prelados deforma a realidade noutros vários aspectos com objeto de atacar
depois a caricatura que eles mesmos forjam. Manifestam os citados bispos que a reta
razão diz-nos que “o home não é somente uma liberdade que ele se cria por si só. O
home não se cria a si mesmo. É espírito e vontade, mas também natureza” (Bento XVI,
Discurso ao Deutscher Bubdestag, Berlim, 22/09/2011). Ninguém, que eu saiba, afirma
que a liberdade humana é criada pelo home, pois a liberdade coincide com o mesmo ser
do ser humano e este o que faz é exercer o que ele é, e, por tanto, exercer a liberdade;
tampouco ninguém afirma que o home se cria a si próprio, pois o ser humano, como
espécie, surde por evolução a partir de animais inferiores, e, como indivíduo, dos seus
progenitores, e, além disso, todo home necessita do concurso dos demais e dos meios
materiais precisos, mas isto não é o que os bispos querem dizer senão que o home foi
criado por Deus, em defesa do doutrina do criacionismo, mas isto reduz-se a pura fé
sem prova nenhuma de experiência empírica. A última proposição deste texto é
manifestação duma antropologia dualista e duma psicologia das faculdades, hoje
periclitadas.
Não é argumento nenhum afirmar que uma lei choca com a antropologia cristã, pois esta
não é mais que uma expressão do des-humanismo cristão, que na prática concebe o ser
humano como uma criatura malévola, que deve submeter-se totalmente a Deus e aspirar
a converter-se em anjo. Trata-se, por tanto, não dum humanismo senão duma deshumanizaçã do ser humano, dum teo-anjo-demonismo, e, conseqüentemente, duma antropologia antiquada, fundamentada no mito e no dogma, que cumpre superar em vez de lançar-se a atacar a aqueles que, legitimamente, disentem dela. Atacam os bispos aos que defendem um dualismo antropológico que separe ideologicamente o corpo do espírito, mas isto é em realidade o que faz a doutrina católica, que, para defender o dogma duma alma imortal, divide o ser humano em entidades distintas e separáveis, sem fundamento nenhum na experiência, incapacitando-se para a construir uma conceição dum ser humano integrado que é um bio-sistema, um sistema vivente e material que adquiriu progressivamente novas capacidades distintas e superiores ás dos animais que o precedem na escala filogenética, e não a união de naturezas dispares e contraditórias. É puro ideologismo e do mais barato apresentar “a procriação como fruto da colaboração com Deus no ato conjugal próprio do matrimônio”.
Criticam os bispos o caráter ideológico de liberdade presente na lei porque não responde
á experiência humana, por ser individualista e porque aboca a um pensamento totalitário. Ë surpreendente que uma confissão religiosa que extrai a sua conceição de fontes totalmente alheias á experiência humana e que se expressa em proposições metafísicas critique que outras cometem esta falácia. O conceito de liberdade da teologia católica é também individualist, pois é o home como indivíduo quem toma as suas decissões ante Deus. Eu não li a lei e não podo pronunciar-me sobre o seu totalitarismo, mas si podo afirmar que o pensamento cristão sempre foi totalitário, porque pretendeu controlar todas as manifestações da consciência, e toda criação ideológica humana, como se demonstra claramente pela oposição á introdução no ensino da matéria “Educação para a cidadania” e pelos numerosos índices de livros proibidos e pela inquisição que pôs em prática o cristianismo quando teve poder para fazê-lo. Alertam da possibilidade de que a lei conduza a “qualquer modificação
corporal á carta”, sem ter em conta que o cristianismo foi quem defendeu uma ideologia que modificou o corpo de todos aqueles que decidiam fazer-se eunucos, especialmente se o faziam pelo reino dos céus, e apelam á emergência cívica dos católicos e, por tanto, a levantar-se, emerger, contra esta lei.
O bispo de Córdova, pela sua parte, aderiu á carta dos bispos de Getafé e Alcalá e incidiu nos aspectos apocalípticos, manifestando que a ideologia de gênero é uma bomba de relojoaria que quer destruir a doutrina católica e a imagem de Deus, não querendo reconhecer que foi a ciência, o pensamento livre superador da superstição, além dos enormes erros e a repressão eclesial e violência eclesial as que urgem uma superação do modelo religioso cristão imposto em Ocidente.