Por Ramón Varela | Ferrol | 28/03/2017
Creio que isto tem grande parte de verdade, mas é confusionista porque se se fez cultura nos conventos foi porque nos outros âmbitos fora brutalmente proscrita, e a cultura que se fazia nos conventos era uma cultura cativa do poder eclesiástico que era quem reprimia com mão de ferro toda criação cultural livre. Por tanto, sem intentar estabelecer nenhuma polêmica com ninguém, devo dizer que esta asserção me parece desafortunada, e, para demonstrá-lo vou apresentar uma série de dados ao respeito.
A Idade Média costuma ser denominada a época tenebrosa, em contraposição à época do Renascimento, que olha cara ao passado Greco-romano, e do Iluminismo, que olha cara ao futuro, que são épocas luminosas. Ambas são épocas que intentam romper com o passado e muito especialmente com o poder da Igreja.
1O cristianismo chegou a controlar na Idade Média as diversas manifestações do pensamento: medicina, tecnologia, ciência, história, filosofia, gramática e literatura, e, em geral, a cultura humanística,... e teve sobre elas um impacto negativo muito importante, que sumiu Europa numa grande atonia técnica e cultural e num analfabetismo generalizado. Quando se declarou a peste bubônica, no ano 540, que dizem que terminou com a vida de cem milhões de pessoas, a Igreja manifestou que a praga era um castigo divino por não obedecer às autoridades da Igreja e desautorizou a medicina grega e romana ao tempo que alguns monges manifestavam que o remédio idôneo para muitas doenças era a sangria. “Os livros e obras de arte foram destruídas porque expressavam ideias e imagens não cristãs. O estudo da medicina foi proibido em base a que todas as doenças eram causadas polos demos e podem ser curadas somente com exorcismo. Esta teoria ainda existia no tempo de Alexandre III, que proibiu aos monges estudar qualquer técnica de cura distinta dos encantamentos verbais”1. A tecnologia praticamente desapareceu e Europa limitou-se a assimilar a técnica de importação oriental: relógio, bússola, pólvora, canhões,... A ciência empírica deixou de cultivar-se e a astronomia ancorou-se no geocentrismo por ser o modelo mais acorde com a Bíblia. A história converteu-se numa verificação das crenças cristãs, só necessária para situar os eventos do passado num contexto bíblico. A filosofia medieval perdeu a sua autonomia e reduziu-se a atuar como escrava da teologia, subordinada aos mitos e dogmas eclesiásticos, deixando, por conseguinte, de ser filosofia, porque esta supõe autonomia, liberdade, reflexão e crítica. Como diz Daniel Boorstin, “A pedra-de-toque cristã era a vontade de crer num único Jesus Cristo e a sua mensagem de salvação. O que se demanda não era criticismo senão credulidade. Os Padres da Igreja observaram que no reino do pensamento somente a heresia teve história”2.
A feminista estadunidense, Bárbara Walker, escreveu que “Ao final da quinta centúria, os governantes cristãos aboliram pola força o estudo da filosofia, matemáticas, medicina e geografia. Lactâncio disse que nenhum cristão deve estudar astronomia. O papa Gregório Magno denunciou toda educação secular como loucura e maldade, e proibiu que os laicos cristãos incluso lessem a Bíblia. Ele queimou a livraria do palatino Apolo, para que a literatura secular não distraia a fé da contemplação do céu”3. O citado papa Gregório I o Magno, escreveu a respeito dos estudos da gramática: “Eu desprezo as construções corretas e os casos, porque considero inapropriado que as palavras do oráculo celestial sejam restringidas polas regras de Donato”4. O qual significa que é maior virtude imitar os textos bíblicos que adoecem de incorreções gramaticais, que seguir as regras do gramático Élio Donato (s. V e.c.). O ano 601 escreve-lhe uma carta ao bispo de Vienne, na Gália, que leva por título: “que o bispo não deve ensinar a arte gramatical”. Nela, começa manifestando que lhe transmitiram muitas boas novas acerca das suas atividades que lhe causaram alegria e que estava disposto a conceder-lhe o que pedisse, mas, “Após isto chegou-nos uma notícia que não podo mencionar sem vergonha, que ti explicas gramática a algumas pessoas. Cuja notícia recebemo-la tão molestamente, e desprezamo-la com muita veemência, de modo que aquelas cousas que se disseram previamente, as convertemos em gemido e tristeza, porque numa boca não cabem entoar louvores a Júpiter e a Cristo. E considera quão grave e nefando seja que os bispos cantem o que não convém a um laico religioso. E ainda que o nosso amado presbítero Cândido quando chegou mais tarde e se lhe perguntou sutilmente por este assunto, o tiver negado e pretendesse escusar-vos, ainda não se afastou dos nossos ânimos, porque quanto é execrável que se diga isto dum sacerdote, tanto convém que se conheça se é assim ou não com satisfação estrita e veraz. De onde, se após isto, se tivessem clarificado que são falsas aquelas cousas que se nos disseram, e se tivesse evidenciado que não estudais bagatelas e literaturas seculares, damos graças a Deus, que não permitiu que o vosso coração fosse manchado com os louvores blasfemos dos nefandos, e trataremos de conceder-vos o que pedis já seguros e sem nenhuma perturbação”5. Como vemos, esta carta insere-se no clima tradicional de afastamento da Igreja, já desde os seus primeiros tempos, a respeito da sociedade laica e da sua cultura, que não duvida em condenar sem paliativos. Neste caso, ousa condenar o mesmo ensino da gramática por ser indigno dirigir-se a Deus com hinos similares aos que se dirigem a Júpiter, e sublinha que o afastamento dum bispo deve ser maior que o dum leigo. Aproveita-se dum rumor sem confirmação que ouve, para repreender o bispo Desidério, que se vê obrigado a provar a sua inocência, ao tempo que lhe faz chantagem de que não acederá ao que pede sem que antes fique clara a sua inocência. Na sua missiva recorre, como é também habitual, aos seus sentimentos de tristeza, vergonha, aflição pessoal, em vez de justificá-lo no direito, neste caso canônico. Alguns pretendem minimizar o posicionamento de Gregório dizendo que não é uma posição da Igreja, e que não se trata duma condena geral da literatura antiga, mas isto não se sustém porque o papa fala como tal e não como pessoa privada, e, em segundo lugar, a condena da cultura humanística está confirmada por toda a tradição apostólica e a prática usual da Igreja durante muito tempo, que confirmam estas manifestações do papa Gregório.
O mal que fez o cristianismo ao saber não se cinge a apresentar uma doutrina fixada em formulações dogmáticas que se pretendem inalteráveis e que se impõem coativamente, senão que também foi enorme o dano produzido ao saber com a queima de livros com objeto de que não ficasse pegada alguma das pessoas que dissentiam do discurso oficial. Os casos são numerosíssimos, mas por citar só algum: “no 391, sob Teodósio I, os agora completamente androcratizados cristãos queimaram a grande livraria em Alexandria, uma dos últimos repositórios da antiga sabedoria e conhecimento” 6. Nesta grande livraria, “da que se diz que tinha 700 mil rolos. Todos os escritos do gnóstico Basílides, 36 volumes de Porfírio, rolos de papiro de 27 escolas de mistérios, 270 mil documentos antigos acumulados por Ptolomeu Filadelfo. As antigas academias de ensino foram cerradas. A educação para todo o mundo fora da Igreja chegou ao seu fim” 7. Como afirma o químico e historiador estadunidense, nascido em Inglaterra, John William Draper (1811-1882): “Animava-os um zelo cremador mais que a possessão duma profunda instrução. Uma vez alcançada uma posição eminente não tinham necessidade da aparência de sabedoria. Em tais circunstâncias, estavam tentados de implantar as suas próprias noções como a verdade última e indiscutível, e para denunciar como magia, ou busca pecaminosa de vãs frivolidades, toda instrução que se levantasse no caminho. Nisto a mão do poder civil assistia. Pretendia-se isolar a todos os filósofos. Todo manuscrito que pôde ser confiscado era queimado imediatamente. Em todo o Leste, os homes destruíam as suas livrarias por medo que alguma proposição desafortunada contida nalguns dos livros os implicasse na destruição a eles e às suas famílias. A opinião geral era que havia direito da obrigar os homes a crer o que a maioria da sociedade aceitou agora como a verdade, e, se se opõem, havia direito a castigá-los” 8. Embora o poder imperial era quem tinha o poder coativo, a responsabilidade era também da Igreja porque era quem o influía e premia para que castigasse os desviantes. “Uma história imparcial está obrigada a imputar a origem destes atos escandalosos e tirânicos do poder civil á influência do clero, e fazê-los responsáveis destes crimes”9.
A queima não só afetou os livros senão também as pessoas. “Ajudados e incitados polo home que seria mais tarde canonizado São Cirilo (o bispo cristão de Alexandria) monges cristãos mutilaram barbaramente em peças com conchas de ostra a aquela notável matemática, astrônoma e filósofa da escola de Alexandria de filosofia neoplatônica, Hipátia. Porque esta mulher, agora reconhecida como uma das maiores sábias de todos os tempos, foi, segundo Cirilo, uma mulher iníqua que incluso presumiu, contra o mandados de Deus, ensinar os homes”10. Após todo este labor de sapa, o papa São João I (523-526) faz o balanço seguinte: "Qualquer traça da filosofia do mundo antigo desapareceu da face da terra”11. Com o imperador Constantino inicia-se a prática dum castigo atroz, como é o de queimar vivas as pessoas. Com anterioridade têm-se produzido queimas isoladas, mas agora a novidade é que se introduz no código penal como uma sanção punitiva legalmente estabelecida polo poder imperial, a quem imitaria também a Igreja. Assim, em outubro do ano 315, decretou que “A comunidade judia não pode lapidar a um judeu convertido ao cristianismo. Qualquer que participasse em tal ato, será queimado”12.
Além do fecho das Academias antigas e da Biblioteca de Alexandria, outras formas de coerção foram a repressão do trabalho intelectual, proibição de leitura e publicação mesmo dos livros sagrados. Também se forçou os cidadãos a aderir à fé católica sob ameaça de ser estigmatizados socialmente mediante o exílio e com a proibição de trato com as demais pessoas.
11. WALKER, BÁRBARA, The wooman’s Enciclopedia os miths and secrets, São Francisco, Califórnia, 2007, p. 210.
22. The discoveer, Random House, 1983, p. 573.
33. WALKER, BÁRBARA, The wooman’s Enciclopedia of miths and secrets, São Francisco, Califórnia, 2007, p. 208.
44. ELLERBE, HELEN, The Dark Side of Christian History, ethosworld.com/.../Ellerbe-The-Dark-Side-of-Christi..., 1996, p. 48.
55. Registri Epistolarum, Documenta Catholica Omnia: Gregorius I Magnus", Liv. XI, Carta LIV (latin) . A truadução inglesa pode consultar-se em Book XI, Letter 54 - New Advent www.newadvent.org/fathers/360211054.htm
6. EISLER, RIANE, The Chalice and the blade, Harpers Collins, 1988, p. 132.
7. ELLERBE, HELEN, The dark side of chrinstian history, 1995, em thosworld.com/.../Ellerbe-The-Dark-Side-of-Christi, p. 46.
8. DRAPER, JOHN WILLIAM, History of the intlllectual development of Europe, Project Gutenberg, vol. 1, cap. 10.
9. DRAPER, JOHN WILLIAM, History of the intlllectual development of Europe, Project Gutenberg, vol. 1, cap. 10.
10. EISLER, RIANE, The Chalice and the blade, Harpers Collins, 1988, pp. 132-133.
11. WALKER, BÁRBARA, The wooman’s Enciclopedia os miths and secrets, São Francisco, Califórnia, 2007, p. 208.
12. Codigo de Teodósio, 16, 8.1.