O Estado fica concebido dum modo hegeliano como uma espécie de Deus sobre a terra que se dota duns plenipotenciários, neste caso o governo central, assistido polos partidos que o apoiam, que transmitem as suas ordens sacrossantas aos seus súbditos e os obrigam a cumpri-las, valendo-se dos seus corpos e forças de segurança, de tribunais condescendentes e duma fiscalia servil, no referente às medidas políticas, e convertida em fiscalia do Governo em vez de fiscalia do Estado. O resultado da desobediência são a imposição de fortes penas de prisão, multas, repressão, incluso no caso de que os cidadãos atuem dum modo pacífico e desarmado e não suponham ameaça de nenhuma classe para a segurança desse Estado. Todos estas medidas coercitivas e repressivas são dulcificadas por uns mídia muito manipuladores e sempre compreensivos com o poder. É uma conceição mais piramidal e autoritária do Estado que a da República federal, pátria do filósofo Hegel, pai da forma mais elaborada de idealismo, que lhe encomenda às ideias, neste caso à ideia de Estado, a reitoria da realidade, culminando deste modo o idealismo platônico-aristotélico.
Mariano Rajoy ameaçou a Catalunha com a aplicação do artigo 155, transcrito literalmente do artigo 37 da Constituição alemã, que neste país nunca se pôs em prática e isto indica que as relações entre os länder e o governo federal estiveram baseadas na lealdade e no diálogo entre o Estado federal e os Estados federados, situação que na Espanha nunca se deu no referente ao encaixe das comunidades autônomas na estrutura territorial do Estado. Uma diferença fundamental é que os Lander têm reconhecida a sua soberania originária, enquanto que no Estado espanhol a soberania é única e o Estado, por meio do seu representante plenipotenciário, considera-se legitimado a fazer o que lhe acomode.. O problema fundamental para qualquer reforma do Estado espanhol é que as comunidades autônomas de Galiza, Euskadi e Catalunha só somam, em números redondos, uns 11 milhões de votantes dum conjunto do Estado de 46 milhões aproximadamente, dos quais ainda não chegam a 5 milhões os que votam nacionalista, e os membros do tripartido têm sempre presente os interesses das suas formações e as expectativas de aranhar, ou polo menos não perder, o voto unionista, ainda que se traduza na perda de parte do voto nas três comunidades citadas. Desta arte, não se arredarão de humilhar os nacionalistas e denegar as suas aspirações de autogoverno. A reação aos inquéritos que lhe dão a C’s um incremento de voto, Rivera manifestou que isso indica que a sua política de mão dura com Catalunha é a acertada. Esta é a maneira de proceder dos políticos unionistas serris. Se a metade da população espanhola for nacionalista desapareceria de raiz o problema catalão, basco e galego porque a política que se aplicaria seria muito mais sensata e pactuada de comum acordo entre as partes. Isto explica também a reação de Rajoy perante o problema catalão: o que há que fazer é não tomar decisões e esperar e que se cansem e pidam papas, atendo-se na prática ao que dizia Ortega, de que o problema catalão, igual que o basco, não se podem resolver e o único que há que fazer é acarretá-lo.
Frente a esta conceição do Estado concebido como superestrutura da que emanam as ordens da cima para abaixo para uma cidadania submissa e passiva, existe a conceição do Estado como a associação de pessoas e povos, para a resolução dos problemas que lhe afetam, conceição defendida já por Aristóteles e, nos nossos dias, polo moralista britânico D.D.Raphael, que tem a sua concreção prática mais patente na confederação helvética que concebe o Estado como uma associação de indivíduos e povos, que são os que têm o protagonismo e quem decidem de todos os assuntos relevantes para a comunidade. Aqui as ordens, em vez de emanar da cima para abaixo, emanam de abaixo para a cima. Esta conceição dota este país duma enorme estabilidade porque a cidadania e os povos (cantões) participam, por meio do referendo, em todas as decisões básicas que lhe afetam. Isto já indica que o que dizem alguns tertulianos de que Espanha é um país mais descentralizados de Europa não tem nenhum sentido. No Estado espanhol, um Tribunal Constitucional pode botar abaixo um Estatuto de Autonomia previamente referendado polo povo afetado, como passou com Catalunha, o qual implica que são estatutos concedidos pola benevolência dos unionistas e carentes de qualquer garantia de que serão respeitados. O Estatuto de Autonomia de Catalunha foi reformado em contra dos requisitos que ele estabelece para a sua reforma, não respeitando, portanto, a legalidade estatutária. Isto significa que tanto a Constituição espanhola como os Estatutos de Autonomias estão totalmente esgotados e agora somente fica saber por quanto tempo temos que regular-nos por cadáveres aos que ritualmente os unionistas lhe rendem homenagem, ao tempo que promovem e secundam mobilizações para exaltar até o fanatismo as paixões primárias dum espanholismo vácuo, que se abraça a bandeiras que somente têm como objetivo negar e afogar os direitos coletivos doutras comunidades, porque os seus estão plenamente reconhecidos.
Escrevia este artigo quando me inteiro das medidas adotadas polo governo do partido popular contra Catalunha, e fiquei estupefato e surpreendido porque não pensava que podia chegar tão longe contra uma comunidade com uma personalidade tão acusada como a catalã. Mais que aplicar o artigo 155, parece uma declaração de guerra. Eu considero também que é uma medida ilegal, porque o artigo 155 permite ao Estado: “1... tomar as medidas necessárias para obrigar à aquela ao cumprimento forçoso das citadas obrigações ou para a proteção do mencionado interesse geral. 2. Para a execução das medidas previstas no apartado anterior, o Governo poderá dar instruções a todas as autoridades das Comunidades Autônomas”. Não se contempla, pois, a possibilidade de executar as medidas por parte do mesmo Estado nem o cessamento dos membros do Govern. Diz num artigo o catedrático de direito constitucional da Universidade de Barcelona, Xavier Arbós que “o 155 não serve para convocar eleições, suporia alterar e modificar o Estatut”, ratificando assim o que aqui dizemos. Claro que estas observações valem pouco para quem se considera por cima da lei.
Dito o anterior, eu proponho que numa futura reforma da Constituição se pactue um artigo 155 bis, que faculte as comunidades autônomas a obrigar o Governo central a respeitar os deveres que a constituição e as leis impõem ao governo central e a tomar todas as medidas para efetivá-las, podendo, a este efeito, recorrer aos mecanismos coercitivos precisos. Isto segue-se da lógica de considerar o Estado como uma associação de povos e cidadãos que são os que têm ou deveriam ter o poder real nas decisões relevantes para a comunidade, o qual somente pode efetivar-se se dotamos o Estado duma autêntica divisão de poderes, que na atualidade não existe. Isto foi ratificado polo unionista de pró Afonso Guerra que disse em 1985, com motivo da reforma da Lei do Poder Judicial: “Hoje carregamo-nos a Montesquieu”, que fora quem manifestou que a divisão de poderes em legislativo, executivo e judicial é a condição imprescindível para que exista uma autêntica democracia. Na atualidade, um único partido com maioria absoluta pode controlar o poder legislativo, executivo e judicial, com a consequência de converter o órgão dos juízes num apêndice do executivo, totalmente politizado, como passa na atualidade.