Fim da justiça rural?

Houve um tempo, não muito longíquo, no que eram as vizinhas de cada couto, de cada paróquia, as que periodicamente, frequentemente cada ano, elegiam em assembleias entre as suas iguais um "juíz", "repúblico" ou "homem" ou "mulher de acordo", para atuar como mediador e conciliador entre as partes nos conflitos que com frequência apareciam entre a comunidade.

Por Joam Evans Pim | Arteixo | 28/04/2014

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O juiz eleito era uma só, talvez a mais formal, das muitas fórmulas tradicionais de resolução de conflitos, entre as quais destacavam os cantares ao desafio (regueifas) nas que toda a comunidade servia como tribunal popular num duelo cantado entre as partes contendentes.
 
Dessa soberania comunitária no âmbito judicial ficaram alguns vestígios. Um deles, muito desvirtuado, é o dos juízes de paz. Da eleição popular em assembleia passou-se à designação a dedo desde as alcaidias, mas manteve-se essencialmente o caráter vizinhal e desprofissionalizado da instituição. Hoje, o labor dos e das juízes de paz gratifica-se habitualmente com 120 euros mensais, compensando dalgum jeito os muitos deslocamentos que devem realizar num rural cada vez mais carente de serviços e nos que a sua função conciliadora teve considerável importância. Mas, de avançar a nova proposta do "mistério" da Justiça, encabeçado por Mr. Gallardón, pouco tempo lhes resta.
 
Este mês Madrid anunciou que o anteprojeto de Lei Orgânica do Poder Judicial irá liquidar os 7.862 julgados de paz existentes no Estado, dos quais na Galiza há quase 300. Junto com os julgados de paz, o anteprojeto pretende eliminar também os partidos judiciais (suprimiriam-se 385 dos 431 existentes), provincializando uma administração que na Galiza se vinha adaptando às comarcas históricas, sendo de facto o âmbito judicial a única dimensão administrativa no que a nossa territorialidade história manteve alguma relevância.
 
Do mesmo jeito que o Estado espanhol suprimiu a possibilidade de criar novas entidades locais menores, aplicando a previsão do Estatuto de Autonomia que reconhecia o direito à personalidade jurídica das paróquias rurais (isto é, de governos vizinhais desprofissionalizados) com a reforma da administração local, agora pretende fulminar o único vestígio, mesmo que deturpado, da justiça popular vizinhal e de proximidade. Do mesmo jeito que os partidos institucionais galegos rechaçaram defender a possibilidade de autogoverno paroquial, renunciam agora a defender um quadro de justiça próprio para a Galiza, onde a relevância de julgados de paz e partidos judiciais vai muito além dos simples números que podem ter na mesa em Madrid... ou na Crunha, ou em Santiago. 
 
Com a reforma do poder judicial proposta, as funções dos julgados de paz locais passam aos tribunais provinciais de instância com o qual, ao contrário do que pretende fazer crer Madrid, não só não se aliviará carga de trabalho, mas judicializaram-se muitos casos que se vinham resolvendo localmente pola via da conciliação sem chegar a procedimentos mais burocratizados. Por detrás está evidentemente um interesse em aumentar os ingressos do Estado através das taxas judiciais e de eliminar as escassas vias para que as pessoas possam resolver autonomamente os seus problemas sem necessidade de depender do aparado judicial profissional (advogados, procuradores, juízes, fiscais, etc.). Num momento de crise e convulsão social, onde os direitos se põem e causa e a capacidade de defesa jurídica das pessoas e coletivos está debilitada, a supressão da justiça rural não profissionalizada é mais um golpe à nossa já reduzida autonomia.
 
De facto, na maioria dos municípios rurais galegos não só se perderá o acesso aos julgados de paz locais, mas eliminando-se os partidos comarcais, os novos Tribunais Provinciais de Instância "asumen todas las competencias que hoy corresponden a los juzgados y aquellas que en primera instancia tienen actualmente las Audiencias Provinciales en los órdenes civil y penal". Para além dos jogos de alegações parlamentares que estão nas mãos desses mesmos partidos institucionais que tão à vontade estão nas urbes galegas como em Madrí ou Bruxelas, há caminhos para a desobediência e a rebeldia que podem recuperar a justiça tirando-a das mãos do Estado para devolvê-la às comunidades vizinhais.
 
Desde o Partido da Terra insta-se, em primeiro lugar, às pessoas titulares das atribuiçõe de Juiz de Paz a manter a sua função embora o Estado elimine formalmente essa posição. Se a mesma administração fez perder o tempo e desvirtuou os Juízes de Paz com labores impróprias como a manutenção dos livros de registro e outras funções burocráticas, as mesmas pessoas, com a legitimidade que na maior parte dos casos lhes conferem suas vizinhas, devem reclamar para si o trabalho conciliador que secularmente representou a instituição, procurando evitar precisamente que os problemas entre vizinhos acabem na justiça de além do "couto", neste caso, na do Estado. Animamos ainda a que, nos próximos meses, as pessoas dispostas a tomar esta via de resistência se apresentem às vagas que sejam convocadas (esta semana mesmo, em Lousame).
 
Convidamos ainda a que, os próprios municípios, dentro da sua autonomia e como ato de protesta contra a nova reforma de Mr. Gallardón, regulem uma alternativa para a concialização vizinhal à margem do sistema judicial do Estado. Como modelo possível, destacamos o estabelecido no Capítulo V da proposta de Ordenança Geral de Paróquias do Partido da Terra (http://www.partidodaterra.net/ordenacao-de-paroquias/), que restaura a figura dos "Homens e Mulheres de Acordo, vizinhos e vizinhas reconhecidas pola comunidade polo seu rigor, responsabilidade e espírito conciliador", como cargos unipessoais eleitos assemblearmente para mediar nas disputas vizinhais e procurar a conciliação e o acordo entre as partes seguindo as lógicas do nosso direito tradicional consuetudinário.
 
Não vos lamenteis, movei-vos.

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