Um governo autonómico anuncia a suba do cânon de uso municipal duma empresa pública de incineração de resíduos. Para encher-se de razão, um dos partidos da oposição decide formar entente com uma multinacional espanhola que tem a concesão duma planta de tratamento de resíduos, também pública, mas concorrente da anterior. O líder do partido faz uma visita mediática à planta com um amplo séquito, à qual se seguem as de outros muitos cargos públicos, que são guiados polas instalações por pessoal da contrata, de um grupo ecologista e de um sindicato, ambos afins ao partido, apresentando-as como modélicas.
Semanas depois, um município governado por esse mesmo partido adere à mancomunidade titular da planta e, ipso facto, o seu alcaide recebe do mesmo grupo ecologista o seu prémio anual como reconhecimento a essa façanha. Simultaneamente, o grupo ecologista em questão faz-se com um programa gerido pola planta para vender as bondades do sistema entre o público. A empresa espanhola está ameaçada de perder o contrato por incumprir as suas obrigas de processamento (manda para o verdedoiro 59% do lixo que recebe), mas uma alteração da composição do grupo de municípios poderia eventualmente mudar a situação em favor da empresa.
As críticas à realidade da planta, bem conhecida pola vizinhança, e as propostas para reconvertê-la ao modelo "porta a porta" adatado ao contexto circundante (que poderiam elevar a taxa de reciclagem por acima de 90%) feitas por um coletivo da paróquia na que se encontra situada, são atacadas desde o entorno do comité de empresa (controlado polo sindicado afim), chegando a negar obviedades como que existe um vertedoiro, que existe um problema de contaminação de águas e mesmo espalhando-se entre as trabalhadoras e vizinhas do município no que está a planta que o coletivo crítico deseja que todo o mundo fique na rua.
Como esta e outras muitas situações evidenciam (qualquer diferença com a realidade é puro acaso), parece por vezes que tudo serve para dar batalha ao partido do governo ou apresentar-se como "salva-pátrias". Um dia o partido de oposição pretende fazer ver que está contra a minaria a céu aberto num conhecido megaprojeto, onde se está a aplicar a legislação que esse mesmo partido de oposição aprovou quando estava no governo, e no dia seguinte sai-se a apoiar no parlamentinho uma mina a céu aberto ilegal como a que uma conhecida cementeira opera do outro lado do País sobre importantes vestígios arqueológicos, numa concessão ilegal outorgada por eles próprios poucos anos atrás.
Outro exemplo: criticar há poucos meses à mesma multinacional responsável daquele megaprojeto por usar um sindicato amarelo importado na defesa dos interesses corporativos, e colocar agora um grupo ecologista e uma central sindical afim ao serviço de uma outra multinacional social e ambientalmente nefasta, para cargar contra qualquer organização que tenha a mais mínima crítica ou para lavar a cara a uma gestão de resíduos que está bem longe do que muitos coletivos ecologistas levam reclamando durante anos.
É certo que o modelo dessa planta é "melhor" do que o da grande incineradora (um "mal menor" talvez), mas é demencial apresentar como sustentável um sistema no que camiões do lixo devem deslocar-se 120 km para ir e voltar cada dia desde a sua origem ou no que 59% do lixo que entra no monte duma pequena aldeia acabe soterrado num vertedeiro, com o consequente impacto para os aquíferos e os solos. Quando a engrenagem satelitar se utiliza para difamar e manipular os medos das pessoas, simplesmente por se proporem outras possibilidades (como uma adatação autóctone do "porta a porta" ou a compostagem comunitária), está-se saindo da órbita para entrar em trajetória de colisão. A aposta interesada por modelos desastrosos, apresentando-os como modélicos para o País simplesmente por serem conjuntaralmente úteis numa infantil estratégia de confrontação com o partido do governo na que o fundo dos problemas é sempre irrelevante, só ajuda a colocar mais atrancos num caminho para um cenário pós-petróleo que é suficientemente complicado de por si.
Abandonando velhas leis da física partidária, é preciso deixar de pretender que sejam os movimentos sociais os que gravitem ao redor dos partidos pois, no atual contexto, as órbitas só tenderão à colisão com a força gravítica, contribuindo para a destruição tanto do partido como dos movimentos. Os partidos, se é que têm ainda algo para oferecer, podem sim articular muitas das suas propostas por volta do que propõem outros movimentos (ambientais, sociais, vizinhais, culturais, linguísticos, etc.), mas sem pretender o seu monopólio ou exclusividade. Um exemplo são as Iniciativas Legislativas Populares promovidas polos partidos através dos seus satélites que não só desacreditam ainda mais a já teatral fórmula da iniciativa popular, mas sementam frustração entre aquelas pessoas que se movimentaram ativamente em torno a uma proposta cujo fim oculto é apenas o de fracassar, como tantos outros movimentos de cara à galeria, para maior "glória" da oposição.
A instrumentalização partidária dos movimentos sociais (efetiva ou em grau de tentativa) não é um fenómeno exclusivo da constelação galaica. A atitude de partidos espanhois e os seus subsidiários "de províncias" em movimentos como o 15M, a PAH ou as recentes "marchas da dignidade", evidencia, com diversos graus de sucesso, a extensão do mesmo princípio. Sirva como exemplo simbólico e recente a apropriação ilegal que um desses partidos espanhois fez do "sol sorridente" antinuclear nos seus cartazes na Galiza, procurando "enverdecer" o seu fulminante industrialismo desenvolvimentista. Mesmo que a organização dinamarquesa OOA Fonden, responsável pola proteção e bom uso do símbolo, tenha denunciado formalmente este uso ilegal advertindo o citado partido da proteção específica estabelecida para que nenhuma organização política se tente apropriar dele, a lógica da vampirização dos movimentos aplica-se mesmo nos seus símbolos mais notórios.
Por trás deste problema endémico está a lógica da representação própria da política profissional parlamentarista, na que distintos partidos concorrem por serem os representantes políticos da cidadania. A alternativa passa por transformar o conceito da política para que todas as pessoas sejamos politicamente ativas assumindo a nossa própria quota de responsabilidade através do autogoverno e iniciativa assemblear. O de votar cada 1825 dias e botar-lhe a culpa a outros durante o resto do tempo já não serve, como bem sabem as pessoas que participam de jeito independente nos movimentos sociais e camadas cada vez mais amplas da população. Isso escrevia o libertário galego Ricardo Melha em 1909, num artigo que ainda hoje guarda toda a sua vigência (http://ricardomella.org/tactica.html#cita1).