Ao achegar-me mais escoitei que cantavam susurrando, algo semelhante a salmódias, a oraçons de tom mui grave. E logo, quando baixei da bíci e cruzei entre a gente, gente de todas as idades e de mui diferente aspecto, mesmo reconhecim algumhas persoas da vizinhança, dei-me de conta de que aquilo era, ou devia ser, umha cerimónia de mágia branca. Oravam.
A cadeia da minha bíci fazia nhic, nhic. Umha mulher ao fondo erguia umha galinha no alto e eu sentim que devia deter-me e guardar siléncio, por respecto e, sobre todo, por curiosidade.
Pareceu-me que a mulher com a galinha na mao falava com sotaque de portugués do Brasil, aínda que quase nom pronunciava palavras. Umha senhora de luto que poderia ser minha avoa dixo-me:
- Agora deve vir o importante... A galinha.
E eu perguntei-lhe:
- E isto que é?
Ela olhou-me de arriba abaixo e dixo-me:
- Nom sei, eu passava por aqui caminho da fonte e parei a ver que passava. Dixerom-me que era para deixar de ter medo.
Assi que si, pensei, molhado pola suor do esforço da subida de dous quilómetros. E decidim esperar um pouco a ver que lhe passava á galinha e, por umha espécie de inércia social, aginha eu tamém comecei a cantar aqueles cánticos em voz baixa, vocálicos, construídos com sons que nom chegavam a formar palavras, que cantarujava a mulher brasileira.
Nom sei quanto tempo levava aló quando um home me tocou no ombro. Era de noite já.
- E isto que é?, perguntou.
- Nom lhe sei bem, eu passava por aqui. A mim dixerom-me que era para deixar de ter medo.
- E agora vai matar a galinha?
- Pois isso parece.
E de ali a um pouco aquel home tamém estava a cantarujar ao meu carom. Aquela situaçom, essa sensaçom, eu nunca vivira algo assi..., umha mestura de expectaçom e gravidade, como se as cançons, aqueles sons fossem hipnóticos.
Á luz dumhas velas, a mulher foi partindo três sandias com um machete. Cada vez que erguia o machete começavamos a exclamar um OOOOOooooohhhh que se convertia num AAAAaaaaaaahhhhhh eufórico quando fendia a fruta pola metade. Eu pensava, como seguramente cada umha daquelas persoas, que o próximo machetazo seria o que decapitasse a galinha.
Já era noite noite quando apareceu um home com umha lanterna polo caminho. Traia umha barra de ferro na mao direita. Era outro vizinho da aldeia mais achegada. Eu aproximei-me del e dixem-lhe
- Nom, nom passa nada, tranquilo...
- E logo que sucede?, dixo, reconhecendo-me e deixando a barra no chao, a um lado.
- Pois nom lhe saberia explicar, eu passava por aqui. Penso que lhe vam cortar a cabeça a umha galinha. Dim que é para nom ter medo.
- Para nom ter medo?
- Para deixar de ter medo.
- Ahá.
Despois mesturamo-nos entre a gente e ao pouco já estavamos a participar com as nossas vozes naquelas cançons alucinantes.
A lua alumeava já perto de cincuenta ou sesenta persoas quando a mulher baixou o machete sobre a galinha.OOOoooooooooohhhhhhh AAAaaaaaaaaaaaaaahhhhh!
E daquela todo foi siléncio e imediatamente a gente começou a se disgregar. Eu subim á bicicleta e continuei polo caminho da minha casa, á luz da lua, nhic, nhic.
Três dias despois apareceu a televisiom, vinha gravar os restos da cerimónia: a galinha, as sandias, as velas... E a notícia saiu no telejornal. Aparecia um dos vizinhos que eu vira cantar ao meu carom, com a olhada tímida e esquiva, a dizer que a galinha já começava a cheirar e que, claro, por questiom de higiene, deveria vir alguém retirar aquilo.
E dixo que ningum vizinho se atrevia a retirar a galinha de ali porque, como diziam que aquilo tinha que ver com a mágia branca, ou negra, todo o mundo tinha medo.
- A gente tem medo, dixo baixando os olhos.