Medo

Um dia que voltava á casa em bicicleta perto já do solpor, pola pista que vai á Leira desde Larazo, dei na encruzilhada de Arriba, onde em tempos houvo um cruceiro, dei, digo, com um grupo dumhas trinta ou corenta persoas.

Por Séchu Sende | Compostela | 29/04/2012

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Ao achegar-me mais escoitei que cantavam susurrando, algo semelhante a salmódias, a oraçons de tom mui grave. E logo, quando baixei da bíci e cruzei entre a gente, gente de todas as idades e de mui diferente aspecto, mesmo reconhecim algumhas persoas da vizinhança, dei-me de conta de que aquilo era, ou devia ser, umha cerimónia de mágia branca. Oravam.
 
A cadeia da minha bíci fazia nhic, nhic. Umha mulher ao fondo erguia umha galinha no alto e eu sentim que devia deter-me e guardar siléncio, por respecto e, sobre todo, por  curiosidade.
 
Pareceu-me que a mulher com a galinha na mao falava com sotaque de portugués do Brasil, aínda que quase nom pronunciava palavras. Umha senhora de luto que poderia ser minha avoa dixo-me: 
- Agora deve vir o importante... A galinha.
 
E eu perguntei-lhe: 
- E isto que é?
 
Ela olhou-me de arriba abaixo e dixo-me: 
- Nom sei, eu passava por aqui caminho da fonte e parei a ver que passava. Dixerom-me que era para deixar de ter medo.
 
Assi que si, pensei, molhado pola suor do esforço da subida de dous quilómetros.  E decidim esperar um pouco a ver que lhe passava á galinha e, por umha espécie de inércia social, aginha eu tamém comecei a cantar aqueles cánticos em voz baixa, vocálicos, construídos com sons que nom chegavam a formar palavras,  que cantarujava  a mulher brasileira.
 
Nom sei quanto tempo levava aló quando um home me tocou no ombro. Era de noite já. 
 
- E isto que é?, perguntou.
- Nom lhe sei bem, eu passava por aqui. A mim dixerom-me que era para deixar de ter medo.
- E agora vai matar a galinha?
- Pois isso parece. 
 
E de ali a um pouco aquel home tamém estava a cantarujar ao meu carom.  Aquela situaçom, essa sensaçom, eu nunca vivira algo assi..., umha mestura de expectaçom e gravidade, como se as cançons, aqueles sons  fossem hipnóticos.
 
Á luz dumhas velas, a mulher foi partindo três sandias com um machete. Cada vez que erguia o machete  começavamos a exclamar um OOOOOooooohhhh que se convertia num AAAAaaaaaaahhhhhh eufórico quando fendia a fruta pola metade. Eu pensava, como seguramente cada umha daquelas persoas, que o próximo machetazo seria o que decapitasse a galinha. 
 
Já era noite noite quando apareceu um home com umha lanterna polo caminho. Traia umha barra de ferro na mao direita. Era outro vizinho da aldeia mais achegada. Eu aproximei-me  del  e dixem-lhe 
 
- Nom, nom passa nada, tranquilo...
- E logo que sucede?, dixo, reconhecendo-me e deixando a barra no chao, a um lado.
- Pois nom lhe saberia explicar, eu passava por aqui. Penso que lhe vam cortar a cabeça a umha galinha. Dim que é para nom ter medo.
- Para nom ter medo?
- Para deixar de ter medo.
- Ahá.
 
Despois  mesturamo-nos entre a gente e ao pouco já estavamos a participar com as nossas vozes naquelas cançons alucinantes. 
A lua alumeava  já perto de cincuenta ou sesenta persoas quando a mulher baixou o machete sobre a galinha.OOOoooooooooohhhhhhh AAAaaaaaaaaaaaaaahhhhh!
 
E daquela todo foi siléncio e imediatamente a gente começou a se disgregar. Eu subim á bicicleta e continuei polo caminho da minha casa, á luz da lua, nhic, nhic.
 
Três dias despois apareceu  a televisiom, vinha  gravar os restos da cerimónia: a galinha, as sandias, as velas... E a notícia saiu no telejornal. Aparecia um dos vizinhos que eu vira cantar ao meu carom, com a olhada tímida e esquiva, a dizer que a galinha já começava a cheirar e que, claro, por questiom de higiene,  deveria vir alguém retirar aquilo. 
 
E dixo que ningum vizinho se atrevia a retirar a galinha de ali porque,  como diziam que aquilo tinha que ver com a mágia branca, ou negra,  todo o mundo tinha medo.
 
- A gente tem medo, dixo baixando os olhos.

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Séchu Sende Séchu Sende, professor de língua e literatura, escritor e domador de pulgas no Galiza Pulgas Circus, a sua última obra é Animais, Editorial Através, 2010. O seu livro de relatos Made in Galiza recibiu o prémio Anxel Casal ao melhor livro do ano 2007 e foi considerado o melhor publicado em língua kurda em 2010.