O martírio da memoria

Na passada semana, os três sindicatos agrários com maior presença (ASAJA, ligado ao PP; UPA, ligado ao PSOE; e SLG) anunciaram uma greve indefinida na produção leiteira que prometia levar até as últimas consequências a denúncia do espólio e sequestro ao que estão submetidos os produtores familiares e cooperativos. Mesmo contando com o compromisso do setor gandeiro, os sindicatos paralisaram a greve em apenas 48 horas, uma decisão que muitos consideraram um signo de debilidade que comprometia a posição lavrega frente às complicadas negociações ainda em curso. Também é certo que os mais de 10 milhões de litros de leite jogados fora representam uma sangria para a já fragilizada economia gandeira. Os sindicatos agrários pedem essencialmente mais intervenção estatal: que o governo garanta preços, que se crie um grupo lácteo por impulso autonómico e que se estabeleça um fundo de resgate para um setor que sofre um endividamento endémico que só pode tender a aumentar no atual quadro produtivo.

Por Joam Evans Pim | Arteixo | 05/12/2012

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A convocatória coincidiu com o 90º aniversário da queda dos Mártires de Sobredo dando, mesmo que não fosse intencionado, um apelo quase épico à greve agrária. Para quem não conheça ou lembre a história, é bom trazer de volta a José Sarmiento, um vizinho de Sobredo que se tinha unido à insubmissão generalizada a pagar os foros, no contexto da luta agrarista para a redenção foral. No início dos 1920 havia polo país centenas de sociedades agrárias, das quais boa parte com caráter paroquial, impulsionando um boicote ao pagamento que foi repressaliado duramente polo Estado. A criminalização do agrarismo, com dentenções arbitrárias, clausura de locais, incautação de livros e chaves, é uma pauta de atuação ainda vigente um século depois contra um amplo leque de movimentos sociais e políticos.
 
Numa cena similar às que se têm vivido no último ano, o 27 de novembro de 1922 um juiz acompanhado da Guarda Civil apresentou-se na aldeia de Sobredo, da paróquia de Guilharei, para proceder ao embargo dos bens de José Sarmiento. A presença dos agentes do Estado foi contestada por mais de dous mil vizinhos e militantes agraristas das paróquias e comarcas limítrofes, convocados a badaladas e estouros de foguete. A Guarda Civil disparou contra a multitude assassinando Cândida Rodrigues, Joaquim Esteves e Venâncio Gonçáles. A sacudida social e política produzida polos eventos de Sobredo foram chave para levar ao governo espanhol a aprovar as leis de redenção de foros. Faz poucas semanas, um suicídio (que não foi o primeiro) provocou similar resultado com o drama dos despejos hipotecários.
 
Tampouco os Mártires de Sobredo foram os únicos. Lembra a estampa de Castelão do Álbum Nós (1931) “Um painossinho polos que morreram em Osseira, Nebra e Sofã!”. Na paróquia de Nebra, em 1916, também a Guarda Civil disparou contra uma mobilização de mais de um milheiro de vizinhos que protestavam contra um imposto arbitrário criado polo concelho para fazer frente à dívida contraída com a deputação. Houve dúzias de feridos e morreram assassinados António Sobrado Luazes, Francisca Carou, Ramona Suárez Pouso, Generosa Vidal e Rosa Cadórniga Maneiro. O episódio representava meses de escalada nas denúncias da Liga Agrária paroquial, durante os quais se produziram numerosas detenções, marchas de protesto e cargas em Porto Doção e Noia. Frente à negativa dos vizinhos a pagar os impostos de exceção, a administração respondeu com novos embargos de bens. Mais uma vez um cenário que não parece tão distante.
 
A amortização do roubo da banca, do aparato político e institucional do Estado e dos fracassos das grandes corporações, uma tríade sob comando e objetivos únicos, recairá de novo numa população mais desapoderada e desmobilizada do que nunca. O espólio das propriedades vizinhais para atuações empresariais selvagens, o aumento dos impostos explícitos ou camuflados (IVA, IBI, portagens, “canón” da água, ...) e a subserviência do aparato estatal a interesses “alheios”, evidenciados nas negociações em curso sobre a produção de leite, continuará incrementando-se de não se perceber o papel que está a desempenhar o Estado no contexto atual. Rogar “bem-estar”, regalias ou regulamentações favoráveis em troco dos últimos redutos de poder político é simples auto-engano, pois estes são privilégios reservadors apenas à tríade estatal.
 
Para não esquecer os Mártires de Sobredo ergueu-se em 1932 um monumento, obra de Nogueira. O monólito esculpido foi dinamitado polos falangistas quatro anos depois ao mesmo tempo que se procedia à dissolução e ilegalização das sociedades agrárias de todo o País. E mesmo que fora reconstruído por suscrição popular nos anos oitenta, a amnésia coletiva que padecemos faz com que não consigamos manter, associar e aprender das lições da nossa própria história. Não é de estranhar que se aplique a lei antiterrorista a quem no-la quer lembrar. Para quem puder achegar-se às bibliotecas compostelás, não deixe de consultar-se ‘Terra a Nosa! Discurso e Identidade Agrária na Galiza “Moderna” (1875-1936)’. Ou, disponível na rede ‘Discurso e identidade agrária na Galiza contemporânea’. Hoje, também o martírio da memória está de cabodano.

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