Lições do processo catalão

Para compreender o bofetão que os unionistas lhe propinaram à reja personalidade política, socioeconômica e cultural que constitui o povo catalão, cumpre ter presente a situação política de que se parte. Na transição de 1978, da que tanto pavoneiam os seus usufrutuários, constituiu-se um estado autonômico, um produto típico espanhol, intermédio entre, por uma parte, o estado federal, pluri-soberano, que goza duma autonomia fundada na sua própria constituição que traduz a sua soberania originária, e, pola outra, o estado unitário, ou seja, com soberania única, que só dispõe, no melhor dos casos, de descentralização administrativa e não política.

Por Ramón Varela | Ferrol | 21/02/2018

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O estado autonômico é um estado unitário, o qual significa que não reconhece a soberania dos povos que o integram, salvo o espanhol, com descentralização política, mas sempre subordinada ao que estabelecer a Constituição espanhola, que só reconhece o povo espanhol como sujeito político, ou seja, dotado de soberania, e, portanto, de poder de decisão.
 
A autonomia é uma concessão político-administrativa de poderes normativos e/ou executivos, de competências e serviços do Estado unitário a entidades territoriais, chamadas autonomias, conservando íntegra a soberania. Os direitos das comunidades autônomas derivam da Constituição e não são direitos originários das entidades territoriais locais, ao contrário do que acontece no estado federal. Não têm constituição própria senão um Estatuto que emana duma Constituição unionista e é aprovado por uma lei do Estado; os povos não participam, como tais, na elaboração e reforma da Constituição, que pode fazer-se em contra do seu consentimento, e o próprio Estatuto pode reformar-se por leis qualificadas -leis orgânicas- dos poderes centrais, nem na legislação ordinária ou na criação da vontade comum estatal. Em nível formal os Estatutos têm que referendar-se polas comunidades autônomas, uma vez reformados, mas isto podem solucioná-lo os hierarcas espanholistas, salvo que se opte por fazê-lo já diretamente polas bravas, com uma reforma ordinária da CE, que, como no-lo ensina a experiência, pode ultimar-se em oitos dias. Nenhum povo que se preze deve aceitar voluntariamente solução tal, salvo que se faça com a perspectiva de proceder por pequenos passos. Mas agora este pequeno passo, foi já desvirtuado polos unionistas que não só o consideram como o termo de chegada, senão que o desvirtuam com medidas que retrogradam a situação atual.
 
Os partidos do artigo 155, junto com o seu entronizado colaborador e mandante, consideram que o Estado é patrimônio seu e que podem usar e abusar ao seu bel-prazer do destinos dos povos integrados pola força e a repressão neste Estado. Quem não esteja de acordo que se ponha, porque dispõem do controlo das forças de segurança e quem manda são os representantes do povo espanhol, e os demais são, todo o mais, uma espécie de usufrutuários molestos de certas partes do território.
 
A propaganda utilizada para infringir-lhe esta ferida profunda ao povo catalão, e indiretamente a todos os demais, principalmente o basco e o galego, foi o slogan «estado-de-direito», identificado mesmo por eles com a democracia, pretextando que é imprescindível cumprir a lei. Em realidade, eles mesmos não crêem nele porque o conculcam a diário, e nem sequer se preocupam de justificar-se ante a cidadania porque quem manda, manda. Agora o lema «l’êtat-c’est- moi», (o estado-sou-eu) do
 rei sol francês, foi substituído polo «l’êtat-c’est-le-parti (o estado do partido), e, no caso do PP, o chefe do partido, ou, com mais precisão: «l’êtat sont les partis unionistes» (O estado são os partidos unionistas).
 
Também se utilizou a noção de democracia, pretextando que não é democrata quem não acata as leis, o maior disparate que se possa ouvir, porque em nome da democracia o que se pretende é precisamente coartar a expressão dum direito democrático como é perguntar-lhe aos cidadãos dum povo pola sua preferência política.
 
Desde Patão se estabeleceu em política o reconhecimento duma personalidade nos povos, análoga com a personalidade dos indivíduos. Em consequência, se se fala dó poder de decisão dos indivíduos, também se pode falar do poder de decisão dos povos, poder de decisão que se identifica com o poder de autodeterminação ou com a noção de liberdade, que quando falta nos permite falar de escravidão. A escravidão dos indivíduos induziu o insigne Castelao a falar da escravidão dos povos, sendo muito conhecido o seu escudo que reza: «Denantes mortos que escravos», em referência à escravidão do povo galego. Portanto, igual que existe uma escravidão dos indivíduos, existe uma escravidão dos povos, que se dá quando um povo não pode decidir o seu destino em liberdade.
 
Esta maneira de atuar dos partidos do 155 veu demonstrar a sua incapacidade de diálogo, e, neste sentido, tanto monta, ainda que no caso do PSOE é muito mais grave porque se esperava dele outra cousa, mas este partido está empenhado em decepcionar aos seus militantes e votantes e sempre com a melhor disposição de agradar aos poderes fácticos. Como receita para o povo catalão ocorreu-lhe como ideia salvadora algo que em Catalunya ninguém mais pede: uma reforma da constituição espanhola, na que se reconheça a singularidade desta comunidade que se traduziria no reconhecimento da nação catalã, mas só no aspecto cultural, ou seja, outra milonga mais porque toda nação, para ser tal, tem que ter reconhecido o seu caráter de sujeito político. O curioso é que agora já pregoa aos quatro ventos que vai ganhar as eleições, e abofé têm razão se o resultado vem determinado por obedecer as consignas dos poderes fácticos (monarquia e IBEX), que serão os que o bendigam para que possa chegar à Moncloa. Nenhum cidadão das nações periféricas do Estado pode esperar nada bom deste partido, como o demonstrou sobradamente com os seus pactos prioritários com o PP para fixar o marco em que operar e a utilização dos partidos nacionalistas como companheiro de viagem para assuntos de trâmite.
 
C’s é o avançado do estado na luta contra todo o que não seja espanholismo puro, e o seu programa pode resumir-se na frase: «Aticemos-lhe aos nacionalistas». Pretende desta maneira conseguir uma uniformização total dos cidadãos e povos do Estado espanhol, para que os seus mandantes do IBEX possam fazer negócios em todo o Estado só contratando com os dirigentes dos partidos unionistas no Moncloa, que se traduziu na maior corrupção que se lembra no Estado espanhol. O PP quer superá-lo agora suscitando o tema da liberdade de eleição da língua própria das comunidades por parte dos pais. Mas, se querem liberdade, por que não a dão também para eleger ou não espanhol? Por que não se suprime do texto constitucional o dever de conhecer o espanhol? Entretando a UNESCO impulsa o mantimento de todas as línguas, como um patrimônio da humanidade, no Estado espanhol o que se quer é afogá-las mediante a estratagema da liberdade, num contexto em que o espanhol não corre perigo nenhum em nenhuma comunidade do Estado. Em todo caso, já tem vários barões socialistas que o apoiam nesta campanha: Javier Lambán, Emiliano García-Page e Guillermo Fernández Vara. Do que se trata é de afogar o idioma próprio das comunidades para que em todo o estado se fale unicamente o idioma espanhol, e inclusive não se recatam de fazê-lo em contra dos representantes da maioria absoluta de catalães e bascos. A primeira lição, por tanto, é que deste estado, regido polos partidos do 155 não podemos esperar nada, bom se entende.
 
A segunda lição é que, como já tenho dito faz muito tempo, a cacarejada divisão de poderes não existe, nem pode existir nunca entretanto os membros do Tribunal Constitucional e do Conselho Geral do Poder Judicial dependam dos bi-partito turnante, completado ou não com o seu companheiro do 155, e enquanto o fiscal geral do Estado seja um lacaio do governo de turno. O poder judicial ficou convertido num instrumento dos partidos unionistas para reprimir e amedrontar a todos os povos nacionalistas periféricos do Estado. .
A terceira lição é que a democracia espanhola é muito limitada, é em grande medida, uma carantonha, uma farsa, que alguns utilizam para pavonear-se perante o exterior, e o seu proceder foi aceitado por uma UE com uma democracia também sumamente desvaliada, uma Europa de mercadores onde quatro senhores decidem ao seu arbítrio da sorte de todos os habitantes europeus.
 
A quarta lição é que o problema das nações não foi resolvido nem existe interesse nenhum em resolvê-lo. A única solução que se oferece é a de suportá-lo até que o sistema repressivo o permita. Como a solução representa uma indignidade para os habitantes destas comunidades, todo indica que o conflito continuará. Os políticos unionistas do 155 não estão para solucionar problemas, senão para reprimi-los.
 
A quinta lição é que contra os nacionalistas não existem leis mais que para reprimi-los como o demonstra o facto de que se impõem medidas baseadas numa interpretação do artigo 155, já vetada polos pais da constituição e, portanto, polo povo espanhol. Não falemos já do castigo infligido às pessoas que o único delito que cometeram é topar-se num colégio eleitoral com pessoal de segurança que utilizava cegamente a repressão contra todo tipo de pessoas, sem respeitar velhinhos e velhinhas.
 
A sexta é que o Rei é rei de parte; promove os valores do povo espanhol e carga sem contemplações contra os dirigentes das nações periféricas regidas por maioria absoluta por nacionalistas, neste caso concretizado no povo catalão e sinal de advertência para os demais. A partir de agora, este monarca, definitivamente não é o seu representante.

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Ramón Varela Ramón Varela trabalhou 7 anos na empresa privada e, a seguir, sacou as oposições de agregado e catedrático de Filosofia de Bacharelato, que lhe permitiu trabalhar no ensino durante perto de 36 anos.