A legislação internacional dos direitos humanos estabelece as obrigações que os Estados devem respeitar. Quando um estado é parte dum tratado internacional de direitos humanos compromete-se a assumir as obrigações e deveres que se estabelecem nela e a mudar a sua legislação para que o próprio país se reja polas normas estabelecidas nos tratados internacionais protegendo os direitos das pessoas e dos povos ao seu desfrute efetivo, limitando ou impedindo qualquer obstáculo em contra, e interpretando a legislação própria de acordo com os citados tratados internacionais.
O Estado espanhol ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos promulgados pola ONU em 1966, que estabelecem no seu artigo 1: “Todos os povos têm o direito de livre determinação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e provêm assim mesmo ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. No Estado espanhol, contrariamente ao que aconteceu no Reino Unido e no Canadá, nunca se respeitou o direito de autodeterminação nem se permite que o povos possam adotar medidas eficazes para procurar o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Como é possível prover ao desenvolvimento da Galiza quando nem sequer se permite que tenhamos uma tarifa da luz própria para o nosso país, expressão das nossas vantagens econômicas comparativas, por se ter determinado legalmente que tem que ser a mesma para todo o Estado, com o objetivo não declarado de que contribuamos à industrialização doutras comunidades, fundamentalmente de Madrid, e não gozemos desta vantagem comparativa? Para negar o direito de autodeterminação utilizam-se subterfúgios como que este direito só se aplica a contextos coloniais, como se um direito dependesse do contexto em que surgiu. Também se podia negar o direito das mulheres ao voto pretextando que este direito surgiu num contexto de luta das sufragistas em Nova Zelândia e Austrália.
Como podemos prover ao nosso desenvolvimento cultural quando, ainda no nosso território, a nossa língua nem sequer goza da oficialidade plena da que sim goza o espanhol? Agora o PP quer obrigar os catalães a ser lecionados em espanhol apesar de que este idioma já é dominante em todas as comunidades do Estado, incluída a própria Catalunya e não corre risco nenhum enquanto à sua supervivência. No âmbito lingüístico, o governo de Espanha incumpre reiteradamente os compromissos que assumiu quando o 15/09/2001 ratificou a Carta Europeia das Línguas Minoritárias. Só por pôr um exemplo, significativo a nível simbólico, no seu artigo 13 determina que as partes se comprometem a “Opor-se às práticas, encaminhadas a desalentar o emprego de línguas minoritárias dentro das atividades econômicas e sociais”. Faz uns dias o Presidente do Governo de Espanha declarou que o debate das línguas minoritárias opõe-se ao progresso, que somente se pode entender referido ao facto de que as línguas minoritárias se falem e ensinem e não de que se fale delas, porque então ainda seria mais grave. O projeto da Confederação helvética creio que deveria ser o exemplo a seguir no Estado espanhol, porque respeita muito bem a pluralidade, não gera problemas de nenhuma ftlineclasse e mantêm-se muito estável no tempo. O projeto europeu concebeu-se a imitação do suíço, e, se quer manter-se fiel aos seus princípios inspiradores, deve reconhecer a pluralidade da sociedade e não pretender amoldar a realidade social a nenhuma legalidade imposta que limite os direitos dos povos a utilizar a sua língua livremente e não mediatizada por barreiras que coartem o seu desenvolvimento normal. O Estado espanhol faz muito bem em reivindicar que se utilize o espanhol em todos os âmbitos comunitários europeus, sacudindo-se a vaga anglófona, que tanto dano lhe pode produzir de cara ao futuro, mas deveria também promover em todos os âmbitos o emprego duma língua tão universal e importante como o galego-português, igual que o basco e catalão.
Mas a inadequação entre a lei e realidade também está-se a dar dum modo flagrante no processo catalão. O artigo 472 Código Penal espanhol vigente especifica dum modo claro em que consiste o delito de rebelião: “São réus do delito de rebelião os que se alçassem violenta e publicamente para qualquer dos fins seguintes: ... 5.º Declarar a independência duma parte do território nacional”. Vimos muitas imagens do que sucedeu em Catalunya, e observamos como se proclamou a independência no Parlament, mas o que não se viu por nenhures foi esse alçamento violento. Pudemos constatar as sucessivas chamadas à calma dos líderes políticos catalães e pode que alguma pessoa isolada rompesse algum cristal, mas se isto se chama rebelião então haveria que considerar com tal centos de manifestações que se produzem todos os anos no território do Estado espanhol.
O artigo 544 do citado Código Penal inclui a figura de sedição. “São réus de sedição os que, sem estar compreendidos no delito de rebelião, se alcem publica e tumultuariamente para impedir, pola força ou fora das vias legais, a aplicação das leis ou a qualquer autoridade, corporação oficial ou funcionário público, o legítimo exercício das suas funções ou o cumprimento dos seus acordos, ou das resoluções administrativas ou judiciais”. Segundo a RAE, a sedição é um “alçamemto coletivo e violento contra a autoridade, a orden pública ou a disciplina militar, sem chegar à gravidade da rebelião. A palavra tumulto segundo a RAE significa: “Motim, confusão, alvoroto produzido por uma multidão, confusão agitada ou desordem ruidosos”. Neste último sentido, qualquer ato de greve poderia ser incluído dentro do tumulto, e unicamente o que os diferenciaria é o fim, mas, muitas vezes também se impede aos funcionários num dia de greve realizar o seu labor. Em Catalunya, polo que eu sei, além de não produzir-se violência, a nenhuma autoridade se lhe impediu o legítimo exercício das suas funções ou o cumprimento dos seus acordos. Creio que o Delegado do governo trabalhou com normalidade e nas conselharias também os que quiseram. Não se vê, por conseguinte, uma base clara para semelhante repressão nem uma razão sólida para que se lhe aplique uma lei que está pensada para um levantamento de caráter militar e não para pessoas totalmente desarmadas e indefensas. O que sim observei claramente foi a violência institucional sobre pessoas inermes, inofensivas, desarmadas. Vim como tiravam polas escadas velhos e velhas que não eram ameaça nenhuma para ninguém. Quem tomaram Catalunya polas armas foram os outros, mas nunca os independentistas, que não têm força própria nenhuma, nem sequer os mossos d’esquadra.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem condenando reiteradamente a Espanha pola vulneração de direitos das pessoas, normalmente por abuso contra a liberdade de opinião, por situações de impunidade dos membros das forças e corpos de segurança do Estado; pola utilização da tortura ou outras formas de violência, especialmente contra militantes nacionalistas periféricos; por não investigar exaustivamente, e pola carência da dobre instância penal. No ano 2012 ditaram-se doze condenas contra Espanha por estes motivos; no 2017, cinco;
Outro modo de atuação que ratifica o funcionamento duma justiça fechada em si mesma, foi a absolvição do presidente do Santander, Emílio Botim em base a que “se o ministério fiscal e a acusação particular tiver solicitado a desistência da causa, não poderia acordar-se a apertura do juízo oral, a instância só da acusação particular”, ou seja, que a acusação particular não basta para impedir o arquivo duma causa se não existe também acusação do fiscal; a condena do ex-presidente do parlamento vasco José Maria Atutxa, no que só existia acusação particular, e, portanto, podia aplicar-se a doutrina Botim, mas O Tribunal Supremo ditou que a doutrina Botim só era aplicável com delitos que danaram alguém em concreto, mas neste caso podia prosperar, ainda que só fosse com acusação particular porque se ia contra interesses coletivos; e o reforço da condena no caso do etarra basco-francês Henri Parot mediante a eliminação do princípio da irretroatividade das penas; em todos estes casos sentenciou-se como fruto duma doutrina ad hoc para justificar o veredito absolutório num caso, que impediu condenar o grande banqueiro, e condenatório nos noutros, que favoreceu a condena do nacionalista vasco e a prolongação da prisão no caso do etarra Parot.
O encarceramento dos políticos catalães que sempre pregaram e praticaram a via pacífica para lograr os seus objetivos políticos, sempre legítimos em democracia, frente a uma injustificável resistência do governo espanhol a mover ficha para atender as suas legítimas reivindicações, ratifica por uma parte a dobre rasoura com o que atua a justiça deste país, e, pola outra, o funcionamento duma justiça tipicamente espanhola que pretende castigar como delinqüentes violentos a pessoas que não mataram nem uma mosca, e a deixar totalmente na impunidade aos que provocaram feridas, que necessitaram assistência médica, a centos de pessoas, atiçados polo lema: «A por eles». Dá também a impressão de que se trata duma justiça governativa porque já os ministros informam do que vai acontecer nos julgados. O ministério fiscal aparenta estar totalmente pregado ao executivo e obedecer fielmente as suas consignas, atuando a modo dum lacaio, ou seja, dum servidor fiel. Não sei se este proceder prosperará perante a justiça internacional, mas já cumpriu com o objetivo de enfastiar-lhe a vida a muitas pessoas, que é o que, ao parecer, realmente se pretende para que sirva de escarmento e amedronte os adeptos ao nacionalismo.
O último episódio de atuação à espanhola da justiça está representada pola condena à justiça espanhola do Tribunal Europeu de Direitos Humanos por violação do artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que diz: “Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informações ou ideias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”. Este falho da produziu-se a raiz de ter imposto a Justiça espanhola uma pena de cárcere a dous manifestantes catalães que queimaram uma foto dos reis de Espanha. A Corte entende que “em matéria de ofensa para com um chefe do Estado, a Corte já declarou que uma proteção acrescentada por uma lei especial em matéria de ofensa não é, em princípio, conforme ao espírito da Convenção... Com efeito, o interesse do Estado de proteger a reputação do seu próprio chefe do Estado não pode justificar conferir-lhe a este último um privilégio ou uma proteção especial com respeito ao direito de informar e expressar opiniões referentes a ele” (35). Isto implica que a reputação do chefe do Estado com leis especiais deve subordinar-se ao respeito aos direitos humanos fundamentais, entre eles a liberdade de pensamento, opinião e manifestação. Tendo isto em conta, não se entende que o mesmo dia em que se dá a conhecer o falho do tribunal europeu, os partidos monárquicos: PP, PSOE e C’s se neguem a despenalizar as injúrias à coroa, ou seja, que, para estes partidos, o decisivo não são os direitos humanos, como já o demonstraram na atuação em Catalunya o 1O senão a proteção por meio da repressão da reputação duma monarquia que não é capaz de defender-se por si própria, com uma atuação exemplar como instituição ao serviço dos cidadãos. Continuamos com a justiça à espanhola, a justiça em alpargatas.